MANHÃ DE DOMINGO
a chuva
fininha...
um bando
de passarinhos
no capim
que cresce
Tal cena eu a vi no final de
novembro de dois mil e vinte e quatro, em uma manhã de domingo, no claustro de
cima do Eremitério. Ainda é primavera. Escrevi este haicai para o amigo Carlos
Martins, mestre de haiku do “Zen do Haicai”, por ocasião de seu aniversário.
Hesitei se usaria travessão,
nenhum ponto ou reticências. Só muito raramente aparecem pontos de reticência
em meus haicais. Seu uso neste haiku, no final da primeira composição frasal,
sugere o monótono contínuo da chuva, tênue, ação que se prolonga e não acaba...
Dá ao verso um tom lacônico e convidativo, além de aprofundar a sensação de
silêncio. São percepções minhas, não sei se outros sentem assim.
É possível deduzir que a chuva é
de primavera: em geral constante, fina, silenciosa, cuja poética é sentimental,
de liberdade, desprendimento, despreocupação (cf. kigologia). Mas disposta como
está, não exerce função de kigo. É
apenas tópico, cenário.
O haicai se enche de passarinhos
no segundo verso e isso pode acentuar a impressão de primavera – apenas e tão
somente ao se levar em conta a chuva do primeiro verso e o desfecho do poema no
último.
Não se insinua qualquer gorjeio
neste haiku. Nele, os passarinhos não cantam.
Lembrei-me da querida amiga
haijin que ensina haicai a crianças surdas.[1]
Quando vi a cena aí descrita, eu a vi sem som, como quem vê um filme mudo,
objetivamente porque a contemplei através de uma vidraça impermeável a ruídos
externos. Se eu tivesse ouvido qualquer ruído ou gorjeio, não teria escrito o
haicai.
Ver as aves comendo alegremente,
um bando de canarinhos, amarelo e lindo – mas... não, seus nomes não podem ser
ditos no poema[2] –
foi epifania nesta minha manhã de domingo.
O terceiro verso é o capim de
primavera, este sim, eixo de sustentação do haicai, seu kigo. Ele é a razão dos passarinhos estarem ali. Sobre ele o poema
se assenta. Sem ele, os outros dois versos perdem sentido – não apenas poético,
mas também do que se pudesse ver neles de primaveril.
Dias antes, devido ao fato do
destinatário do poema ser requisitado para estar em vários eventos
haicaísticos, alguém o comparou a “capim de beira de estrada, que cresce para
todo lado”. Daí o desfecho dos versos poder ser lido como alusão a
isso e gracejo. Nesse caso, os passarinhos seriam também aqueles que em volta do
mestre se nutrem do espírito do haicai.
Quando foi instado, por mim, a
analisar e criticar duramente o poema, escreveu: “tem emoção e sensibilidade,
sem ser piegas. Isso é conseguido pela cena quase infantil de passarinhos
ciscando e com o duplo uso do diminutivo na linguagem, o que aproxima o poema
do coração do leitor. Outro aspecto é o uso de karumi e shasei, a cena
como ela é, um esboço da vida, uma fotografia do real, tirada com o coração...”
Para não esquecer, tomo nota disso.
No mundo há pessoas gentis.
Seishin
Notas
soltas...
[1] A
haicaísta Lourdes Basílio. Sobre ela há menção no artigo VOO DE PASSARINHO...
Cf.: https://sendasdohaicai.blogspot.com/2022/01/voo-de-passarinho.html
[2]
Não podem ser ditos porque isso faria dos canarinhos o kigo do poema.