HAICAIS DE NENPUKU SATO - Parte 1
Parte 1
HAICAIS DE NENPUKU SATO
念腹句集
“Nenpuku Kushū”
Alguns haicais de Nenpuku Sato (1898-1979), traduzidos
por mim, em meu diário e notas íntimas. Pertencem ao volume “Nenpuku Kushū” de
1953.
[1]
(昭和二年)
(Segundo ano da Era Showa, 1927)
強東風のわが乘る船を見て來たり (p. 3)
tsuyo kochi no waga noru fune o mite kitari
vêm para ver
o navio em que embarco
forte vento leste
[2]
(移民船布哇丸)
(Navio de imigrantes Havaí Maru)
長崎や船に戻れば見ゆる花 (p. 3)
nagasaki ya fune ni modoreba
miyuru hana
Nagasaki —
olhando flores na volta
para o navio
[3]
(香港)
(Hong Kong)
五月雨や客も跣足に支那俥 (p. 4)
samidare
ya kyaku mo hadashi ni shina guruma
chuva de verão —
clientes também descalços
nos jinriquixás
O nome da chuva é samidare,
chuva do quinto mês, chuva do início do verão japonês.
[4]
(印度洋)
(Oceano Índico)
むらさきの流星垂れて消えにけり (p. 6)
murasaki no ryûsei tarete kie ni keri
estrela cadente
um risco roxo no céu
e logo se esvai
[5]
(サントス所見)
(Descobertas da cidade de Santos)
菊咲くを友もみつけて垣間見る (p.
7)
kiku
saku o tomo mo mitsukete kaima miru
o amigo também
quis dar uma olhada nas
flores de crisântemo
[6]
(移民列車衝突)
(Colisão de trem dos imigrantes...)
土くれに蝋燭立てぬ草の露
(p. 7)
tsuchi kure ni rôsoku tatenu kusa
no tsuyu
uma vela acesa
fincada na areia
orvalho na grama
No original, os kanjis de “vela” estão escritos de forma tão
antiquada que, creio, já não se usam. Tipo
蠟... Por
isso, corrigi.
Nenpuku chegou ao Brasil em 24 de maio de 1927. Esse haicai é
uma alusão à morte do seu irmão, naquela circunstância, vítima do acidente expresso
na legenda. Menção à cova pobre na qual foi sepultado o irmão...
[7]
八方に流るゝ星や天の川 (p. 9)
happô ni nagaruru hoshi ya ama
no gawa
espocam estrelas
pra qualquer lado que se olhe —
a via láctea
[8]
春雷や拓きし土を守り住む (p.
11)
shunrai
ya hiraki tsuchi o mamori sumu
trovão de primavera —
incumbência de cuidar
da terra onde vivo
[9]
井鏡やかんばせゆがむ晝寝起 (p. 12)
i kagami ya kanbase yugamu hirune oki
depois
do cochilo
a
distorção do semblante
no
espelho do poço
Este
é um haicai de verão. O kigo do poema é aquele cochilo que se dá depois do
almoço, no maior calor do dia. Está escrito com kanji diferente do que se usa no
Japão de hoje.
[10]
雷や四方の樹海の子雷 (p. 13)
kaminari ya yomo no jukai no kogaminari
súbito trovão —
dos cantos todos da mata
bradam trovõezinhos
Lit.: “trovão! – e – dos quatro cantos do mar
de árvores, trovões bebês (eco)”.
Eu acredito que o próprio deus Tupã tenha
reverenciado o sublime mestre Nenpuku, por este espantoso haiku!
[11]
立かけて木にある戸かな夕立中 (p. 14)
tatekakete ki ni aru to kana yudachi chû
chuva repentina
fico esperando em pé
debaixo da árvore
O nome da chuva é yūdachi, que os haicaístas também pronunciam yudachi. Ela é súbita, forte, ocorre em tarde ou noite de verão.
[12]
石木に斧うちあてぬ秋の山 (p. 18)
sekiboku ni ono uchi atenu aki no yama
é pau
é pedra
os
golpes do machado
na serra
de outono
Sensação
de que os golpes do machado ressoam para todos os lados, como o canto das cigarras
no rochedo do poema de Bashô.
Na
maneira como traduzi quis também lembrar a bossa nova Águas de março de Tom Jobim e Elis Regina.
[13]
渡り鳥わが一生の野良仕事 (p. 20)
watari dori waga isshô no nora shigoto
ave de arribação
a vida toda se vai
no labor do campo
[14]
(霜害二句)
(Estrago causado pela geada, haicai 2)
霜害や起伏かなしき珈琲園 (p. 36)
sôgai ya kifuku kanashiki kafee sono
a ondulação
da plantação de café —
dano da geada
[15]
伸びたちし枝にかためて花珈琲 (p.
51)
nobi tachishi eda ni katamete hana kafee
no pendor do ramo
apinhadas bem juntinhas
flores de café
[16]
野良莨してひまな手の虻を打つ (p.
53)
nora
tabako shite hima na te no abu o utsu
fumando tabaco
que tédio ficar tangendo
estas mutucas
[17]
大汗をかいて鍬輕くなりにけり (p. 69)
ôase o kaite kuwa karuku nari ni keri
pingando suor
parece ficar mais leve
a enxada nas mãos
[18]
雨あがる月に向いて蟇の鳴く (p. 71)
ame agaru tsuki ni muite hiki no naku
ao cessar a chuva
o coaxar dos sapos
namorando a lua
O que Nenpuku escreveu foi mais ou menos isto:
“depois da chuva / o coaxar do sapo / voltado para (encarando) a lua”. Singular
ou plural, tanto faz! A primeira tradução dialoga de modo jocoso com clássicos
do cancioneiro popular brasileiro.
[19]
椅子の上に胡坐をくんで夜なべかな (p. 77)
isu no ue ni goza o kunde yonabe kana
de pernas cruzadas
assentado num banquinho
até altas horas
Um amigo explicou-me que yonabe, ao pé da letra “trabalho noturno”, é kigo de outono. Não encontrei
paralelo no nosso dicionário de expressões sazonais.
[20]
日向ぼこ行きたる荷馬車戻りけり (p.
79)
hinata
boko yukitaru nibasha modori keri
banho de sol
puxada pelo cavalo
volta a carroça
[21]
短日や先だち戻る野良の馬 (p.
79)
tanjitsu
ya saki dachi modoru nora no uma
o dia mais curto —
o cavalo da fazenda
foi e já voltou
[22]
乳袋かけたる山羊や春の泥 (p.
81)
chichi bukuro kaketaru yagi ya haru no doro
respingos nos úberes
de nossa cabra leiteira
lama de primavera
[23]
瓜一つ掌にして菜の手入 (p. 103)
uri hitotsu tenohira ni shite
na no teire
cuidando da horta
e na palma da mão
um melão
[24]
森の雲なくなりしより朝寒し (p. 115)
mori no kumo naku narishi yori asa samushi
sobre a floresta
quando as nuvens se dissipam
frio matinal
[25]
冬蝿や乞食よぎる汽車の窓 (p. 121)
fuyu bae ya kojiki yogiru kisha no mado
moscas de inverno —
pela janela do trem
um mendigo passa
[26]
少し降る雨あたゝかし珈琲畑 (p. 123)
sukoshi furu ame atatakashi kafee bata
uma
chuva fina
cai
morna e suavemente
sobre
o cafezal
[27]
木の間くる蛾に提ランプ急ぎけり (p.
129)
ko no ma kuru ga ni sage ranpu isogi keri
através das árvores
carregando um lampião
quantas mariposas
[28]
ブラジルは世界の田舎むかご飯 (p. 134)
burajiru
wa sekai no inaka mukago meshi
nação brasileira
a roça do mundo e eu só
no arroz com batata
Quase escrevi no último verso “arroz com
feijão”, como nós brasileiros dizemos do absolutamente frugal. Arroz com mukago, o bulbilho do inhame.
Este haicai já foi traduzido para o português
por Maurício Arruda Mendonça, em sua bonita obra “Trilha forrada de folhas –
Nenpuku Sato: Um Mestre de Haikai no Brasil” (Edições Ciência do Acidente,
1999). Lá, consta: “O Brasil é o celeiro do mundo / e eu aqui comendo / arroz
com batatinha...”
No meu volume Nenpuku Kushū 1, este haiku está
também na primeira página escrito à mão e assinado pelo próprio Nenpuku.
[29]
門入れば耕主の國や花珈琲 (p. 141)
mon ireba kôshu no kuni ya
hana kafee
depois do portão
o país do magnata —
cafezal em flor
Atravessar o portão e ingressar na propriedade
do potentado, lit. “fazendeiro”.
[30]
鄙びつゝわが娘育つや花珈琲 (p. 141)
hinabi tsutsu waga ko sodatsu ya hana kafee
como
caipira
minha
filha vai crescendo —
flor
de café
“Em
meio às coisas do campo, minha filha cresceu”... Parece que a flor de cerejeira
deu lugar à flor de café! Aqui onde eu moro, a cultura do café se impõe e em
determinadas épocas do ano tudo gira em torno disso. Em nosso sítio há alguns
mil pés de café, que é nada perto dos grandes produtores! Só quando vi um
cafezal florido, entendi os haicais do mestre Nenpuku.
CONTINUA...
Seishin
清心
(As traduções são amadoras, não têm fins
lucrativos e possuem o exclusivo interesse cultural de divulgar a obra de
Nenpuku Sato – até agora minimamente traduzida – entre leitores de língua
portuguesa. Se houver algum erro de kanji, a responsabilidade é minha que os
transcrevi diretamente do original. O mesmo se pode dizer dos erros de
tradução.)
____________________
BIBLIOGRAFIA:
1) Nenpuku
Kushū, primeiro volume da coleção de haicais de Nenpuku Sato – contém cerca
de 640 haicais – impresso no Japão, no ano 28 da Era Showa (1953). O título da
obra em nossa língua seria algo como: “Coletânea de Haicais de Nenpuku”.
2) Dicionário mais consultado para a leitura
de kanjis: Jisho.org
(japonês-inglês). Vários outros de minha biblioteca.
3) Para a verificação de kigos brasileiros: Natureza – berço do haicai: kigologia e
antologia, de H. Masuda Goga e Teruko Oda, Empresa Jornalística Diário
Nippak Ltda., São Paulo, 1996.
4) Para a comparação do poema “nação
brasileira / a roça do mundo...” e dados biográficos de Nenpuku: Trilha Forrada de Folhas – Nenpuku Sato: Um
Mestre de Haikai no Brasil, de Maurício Arruda Mendonça, Edições Ciência do
Acidente, São Paulo, 1999.
5) Sobre o haicai “salvos do confisco” (publicado
na parte 2): O Haicai no Brasil, de
H. Masuda GOGA, Editora Oriento, São Paulo, 1988.
6) O romaji
– a transcrição do japonês para as letras latinas – é gentiliza de Edson Kenji
Iura. De uma vida dedicada ao haicai, ele é autor de várias obras do gênero, dentre
as quais a recente e obrigatória para todos os amantes de literatura japonesa: Antologia de Haicais Clássicos, Edson
Iura (organizador e tradutor), Telucazu Edições, 2024. Ele é também criador do
CAQUI, primeiro sítio da internet dedicado exclusivamente ao haicai em língua
portuguesa.