VOO DE PASSARINHO

 

(Imagem Pixabay)

– HAICAI –

VOO DE PASSARINHO

 

A natureza e suas mudanças

Sentir a natureza em suas mudanças não depende de estações bem definidas.

Quando se pensa o contrário – se você está no Brasil, por exemplo, que é um país tropical – e não se liberta de uma vez por todas da fantasia de um haicai que precise de neve ou de flores de cerejeira para existir, fará cair em descrédito o que por convenção chamamos de haicai tradicional ou, como prefere Edson Iura, haicai sazonal brasileiro.[1]

Aos próprios japoneses que aqui viviam, dizia o mestre Nenpuku: esqueçam a natureza do Japão.[2] É necessário aprender da natureza do Brasil, se você está no Brasil.

Um dos momentos célebres da história do nosso haicai é aquele em que o mestre Goga explica “kigo” aos que não acreditavam ser possível poesia de estações em solo tupiniquim.[3] Sim, é possível. É possível aqui e em qualquer parte do mundo.

Embora haja evidentes implicações nisso, o haicai não é aprisionado por geografia ou idioma, quaisquer que sejam. Para que ele aconteça, são necessários apenas: a natureza, o ser humano, uma certa disposição de espírito.

Um haicai brasileiro merece o mesmo respeito e a mesma consideração de um haicai do Japão, quando são bem realizados. Nem mesmo o fato de que aí se tem enorme esteio cultural de repertório, formação e desenvolvimento, indiscutíveis aspectos que o favorecem, além do uso de ideogramas e a maneira própria de contar os sons ou fazer cortes nas justaposições, nem mesmo isso torna menos complexo um haicai de língua ocidental.

Assim como há potencialidades inerentes ao haicai de língua japonesa, há igualmente vantagens próprias e até exclusivas dos repertórios ocidentais.

Tenho buscado, em meu próprio caminho, achar, naquilo que muitos críticos apontam como desvantagem ao haicai escrito em língua ocidental, a força de meu próprio haicai. É naquilo que apontam como pobreza, debilidade, escassez, vazio, aparente superficialidade, defeito de se fazer haicai neste lado do mundo, que busco a sua força. Isso, porém, é assunto para outro momento.

Reafirmo que respeitamos e veneramos as obras e os mestres japoneses[4], mas é preciso que valorizemos e busquemos o genuíno sabor do haicai do Brasil, a partir de sua mais pura brasilidade, não aquela de ideário romântico ou pueril autoafirmação, mas um natural e simples modo de ler a natureza e entrar em comunhão com ela, onde estamos e somos.

Em outras palavras, deve-se buscar a verdade do haicai. É isso, a meu ver, o que de melhor pode ser almejado por haicaístas brasileiros, mas onde infelizmente muitos de nós ainda nos equivocamos. Nessa matéria, qualquer imitação não disciplinar é mero exotismo, fetiche ou caricatura. Mesmo os nomes haicaísticos dos haijins brasileiros são mais felizes quando expressam a própria terra e as línguas do Brasil.[5]     

Podemos perceber as variações de clima e transformações da natureza, ao longo de todo o ano, em qualquer parte do Brasil. Isso, é claro, exige treinamento e sutileza, sensibilidade apurada, capacidade de observação e, não poucas vezes, verdadeira reeducação dos sentidos. Requinte estético, em última análise. Sem dúvida, ajudará muito o manuseio de algum saijiki, dicionário de kigo, com o estudo da kigologia local.[6]

As pessoas do campo que conheci em Minas Gerais e no Nordeste do Brasil, nos interiores de São Paulo, no Amazonas e extremo Sul, em lugares por onde andei, todas elas sabem ler a natureza local, e, mesmo quando não usam os nomes das estações, identificam a época de cada flor ou fruto, de plantar e colher, as nuvens do céu de cada tempo, o frio e o calor de cada período, as luas dos meses, a aparição de insetos e outros bichos em determinadas ocasiões do ano. Essas pessoas são mestres de primeira grandeza, para quem quer ser haijin. Para mim sempre o foram e eu as reverencio.

Nesse ponto, não há diferença entre os que têm contato com a natureza de estações bem marcadas e os de lugares onde isso só é percebido a partir de mais comprometimento com a natureza. Claro está que, quanto mais ostensivos forem os fenômenos, mais facilmente serão assimilados pelo senso comum. No entanto, a incapacidade de perceber a transitoriedade em mais sutis estações, ou naquilo que às vezes se diz de aparente verão o ano inteiro, não anula o fato de que há variações consideráveis.

Um haijin não deve se iludir ou cair na armadilha de aparências. As pessoas que mencionei, muitas delas iletradas, sabem mais de haicai do que eu e quase todos os haijins que conheci. A quem duvidar, sugiro que converse com semelhantes indivíduos.

As mudanças naturais que ocorrem ao longo do ano, aqui como em todas as partes do mundo, podem ser apelidadas de primavera, verão, outono, inverno;[7] ou estação seca, estação chuvosa etc. Poderíamos inventar muitos outros nomes, se quiséssemos.

O que precisamos é entender a natureza de onde estamos, sem subjugá-la a demarcações espúrias. Dessa percepção nasce a apreensão do haiku, a partir de milhares de kigos, muitos dos quais sequer foram notados. E, não, você não precisa ir ao campo ou morar na floresta, ser um guardador de rebanhos ou agricultor, para aprender isso!

Um haicai não precisa ser bucólico para ser bom; será bom se for verdadeiro, e verdadeiro quanto mais fiel for à sua expressão de vivência que, com alguma carga de subjetividade, torna-se experiência.

Da experiência nasce a expressão do haicai, moldada ao uso de determinada linguagem ou repertório – é isso que faz dele um haicai, não outra coisa ou outro tipo de poesia.

Em São Paulo, no coração daquela que é uma das cidades mais populosas do mundo, em meu treinamento de haijin, esforcei-me para assimilar a natureza em suas mais discretas alterações ao longo de todo o ano, isto é, aprender o que é próprio de cada época, o que não é comumente transferível de uma esfera à outra de tempo. A mesma coisa no que se refere a relações humanas e acontecimentos sociais.

Em minha terra natal há o tempo de São João, e a simples menção disso nos remete de modo quase mágico a uma infinidade de lembranças, sensações, festas próprias, sabores, cheiros, comidas típicas exclusivas daquela época, feitas por nossas mães e avós a partir de receitas passadas de geração a geração, bebidas, músicas regionais, o som do acordeão, quadrilhas juninas, encontros de família, lembranças de antepassados, as fogueiras acesas na noite do Santo, os folguedos ao redor delas, as juras de padrinhos e afilhados, o tipo de frio que faz lá, expressões singularíssimas da religiosidade popular, amor à terra, sentido de pertencimento e outras mil coisas que nos comovem. Esses fatos são ainda mais acentuados nas pequenas cidades interioranas. Um coração nordestino entenderá o que se sente à simples menção dessas palavras e quaisquer outras que nos remetam ao tempo referido.

 

Modos de estar no mundo e na linguagem

De vez em quando, converso com Paulo Franchetti sobre haicai. São saborosas discussões, porque concordamos e discordamos sem exasperação. Seu entendimento de haicai é arrojado e torna-se para mim instigante, ainda mais naquilo que em sua prática é peculiar e confronta o meu próprio estilo.

Ele expressa bem o que é haicai quando afirma que é um modo de ver, estar no mundo e, sobretudo, na linguagem. Essa é uma definição precisa.

Só as obras produzidas pelo espírito são dignas de consideração, dizia Bashô. O velho mestre japonês exortava os seus discípulos a não enlamearem as coisas com afetação, evitando a visão própria. Desse modo, o ato de fazer haicai não provém de uma habilidade mecânica, mas de moção do espírito. Não há necessária conotação religiosa no que digo. Refiro-me, evidentemente, ao haicai que pretendemos alcançar, um haicai de implicação ética.

Para Franchetti, o haicai não pode ser concebido só por ideias ou palavras, mas nasce da experiência e do despojamento de espírito. Haicai é modéstia, atitude frente ao mundo e frente à linguagem. Desse modo, inclina-se ele ao “primado da sensação”, entendendo que a alma do haicai não é necessariamente qualquer coisa que chamemos de kigo, mas a identificação de uma caraterística transitória, sensória, que se projeta frente ao universo da repetição cíclica.[8]

Há alguns anos a haicaísta Mahelen Madureira[9] desenvolveu em Santos, litoral paulista, o interessante projeto de produção de haicai, sensibilização e consciência ecológica, junto a moradores de rua. O resultado foi surpreendente, ainda mais se levarmos em conta a situação de miséria a que essas pessoas foram lançadas e o quanto de dignidade se lhes devolve ao receberem mais que um prato de comida. Apesar das dificuldades de comunicação escrita, esses haijins sem teto compuseram, partindo de suas próprias realidades, de seu lugar no mundo e linguagem comum, textos admiráveis, que poderiam figurar, ao lado de haicaístas já consagrados, nas páginas das melhores antologias de haicai.  

Igualmente brilhante é o trabalho de Lourdes Basílio e seu ensino de haicai a crianças surdas. Com a elaboração de material adequado e estudo in loco da natureza, ela prova que não há obstáculo intransponível à prática do haicai:

“A Língua Brasileira de Sinais (Libras) é uma Língua como outra qualquer. Minha língua expressa meu pensamento. Desde que eu tenha uma língua, conseguirei me expressar. Entretanto, o modo “surdo” de ver o mundo é diferente do modo “ouvinte” de vê-lo. O surdo possui experiências visuais. O cego, por exemplo, possui experiências táteis e sonoras. Nosso grupo trabalha com a visão antropológica da surdez, que é uma visão da diferença linguística. Se todas as pessoas fossem surdas, o mundo não seria sonoro, apenas visual, ainda que o som existisse. Dessa forma, porque se ater à falta e não às potencialidades? Quando eu ensino haicai, não me preocupo com a falta. O trovão, por exemplo, tem barulho, mas também há a descarga elétrica produzida no fenômeno. Todas as pessoas percebem, inclusive os surdos. Os pássaros cantam, sim, e teoricamente o aluno pode ver que o pássaro está cantando, o bico se mexe... É só explicar para os alunos, que eles entendem. Apenas os sons são importantes? Nós, ouvintes, deixamos de perceber muitas coisas porque enxergamos. O vento no rosto, a temperatura da água, a maciez da plumagem de uma ave, a dureza das pedras no rio, a força da correnteza também são elementos sensoriais que o surdo percebe e expressa. Em relação ao som, propriamente dito, todos nós temos uma musicalidade interna. A vibração do som é sentida no corpo, ainda que eu não consiga ouvi-lo.”[10]

O trabalho de Lourdes Basílio é inspirador. Talvez por ter uma avó cega, eu quis aprender braile. Aí começou meu encanto por novas formas de linguagem. Era fascinante para mim que alguém pudesse tocar as palavras, como os cegos. Durante algum tempo eu escrevia textos em braile, para um grupo de cegos.

Conheci Lourdes no Grêmio Ipê, admirando-a pelo estilo de haicai e pela determinação de criar meios de transmiti-lo com inclusão. Ela me mostrou, com a beleza do haicai em Libras, esse outro jeito de tocar as palavras, um dos tantos modos de estar na linguagem e ser no mundo. O bom haicai é inclusivo, educa e dignifica as pessoas.

Em todo o país, a partir de trabalhos especialmente coordenados pela mestra Teruko Oda, milhares de crianças têm conhecido e praticado o haicai. Em diversas ocasiões travei contato com educadores que dão testemunho da riqueza que é levar esse tema às salas de aula. Nos concursos nacionais de haicai e no mundial,[11] é extraordinária a capacidade que os haicaístas mirins têm de nos surpreender.

O haicai é como um passarinho: muitos caminhos se abrem ao infinito de seu voo, quando não o prendemos em nossas mãos.

 

Seishin

seridoano@gmail.com

 


[1] Diferentemente do que pensa Iura, em seu artigo “Nem tradição nem modernidade” (Telucazu Edições, 2021, p. 51-61), para mim as duas nomenclaturas só podem ser aplicadas, sem erro conceitual, ao haicai que fazemos. Considero razoável a primeira, consagrada pelo uso e adotada pela crítica, embora reconheça a absoluta precisão da segunda, definida por ele.

[2] “Para escrever o haikai brasileiro é preciso esquecer o haikai aprendido no Japão”. Trilha forrada de folhas: Nenpuku Sato, um mestre de haikai no Brasil, de Maurício Arruda Mendonça. Edições Ciência do Acidente, São Paulo, 1999, p. 121.

[3] Remeto o leitor a Goga e Haicai, um sonho brasileiro, Org. Teruko Oda, Escrituras, São Paulo, 2011, pp. 17-19.

[4] Isso se reflete, por exemplo, no uso de palavras que incorporamos ao nosso cotidiano, como “kigo”, “haijin”, “sekidai”, “ginko” e outras, mesmo quando são possíveis os seus correspondentes em vernáculo, fenômeno que atribuo à formação espontânea do uso vocabular em nossos grêmios, pela convivência, durante décadas de nossa tradição, com professores japoneses e o contato frequente com a língua japonesa, o que para alguns de nós é vivência cotidiana até o presente momento.

[5] O nome haicaístico do autor deste artigo é japonês porque lhe foi atribuído por mestra de origem japonesa. Mas é mais natural e sumamente elegante que haicaístas brasileiros adotem nomes brasileiros.

[6] Temos poucos dicionários de kigo no Brasil, a maioria em japonês e para uso de grupos de haicaístas japoneses radicados no Brasil. O mais conhecido nacionalmente, no entanto, foi escrito em português, organizado pelos mestres Goga e Teruko Oda, intitulado “Natureza: berço do haicai”, publicado pela Empresa Jornalística Diário Nippak Ltda. em São Paulo, em 1996. Este, embora imprescindível, terá uso problemático no que toca a diversos vocábulos, fora de parte do sudeste do Brasil. O referido saijiki brasileiro, aliás, nunca se propôs a ser oficial ou cânon nacional. Isso está claramente advertido em sua introdução. Os haijins de cada região, por exemplo, podem criar listas próprias de vocábulos regionais que sirvam para estudo e aprofundamento dos kigos locais. Porém, qualquer dicionário de kigos será contraproducente se servir apenas para a busca de palavras, no intuito de fazer haicai, sem se entender que a alma das palavras, nesse caso, é a própria natureza e real vivência. Se sem kigo não há haicai, para a máxima apreensão do kigo é necessário libertar-se do kigo.

[7] Remeto o leitor ao excelente artigo de Edson Iura: “Poesia das estações”, em Cesto de caquis – Notas sobre haicai, Jundiaí: Telucazu Edições, 2021, p. 63-72.

[8] Tudo isso está difuso em sua teoria do haiku, expressa em inúmeras publicações, mas aqui baseio-me em correspondência pessoal de 2021. Cito-o livremente, creditando-o.

[9] Mahelen Madureira é licenciada em história, haicaísta e autora de vários livros de poesia. Ministra oficinas de haicai em escolas e instituições filantrópicas. Coordena o Grupo Haicai no Atlântico e é membro do Grêmio Haicai Ipê e do Grupo Haicai no Atami.

[10] Lourdes Basílio é Mestra em Letras e Especialista em Libras e em Educação de Surdos. Membro do Grêmio Haicai Ipê. A citação é parte de uma resposta que me deu por escrito, em conversa datada de 09 de março de 2018.

[11] Refiro-me ao World Children’s Haiku Contest, organizado pela JAL Foundation de Tóquio. Tanto em concursos nacionais como no referido concurso mundial assessorei, em diversas ocasiões, a mestra Teruko Oda.

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