ÁRVORE ESPLÊNDIDA...


Imagem Pixabay

 

Rodada de haicais, sobre a Sexta-feira Santa, do Grupo Zen do Haicai. Avaliação que me foi solicitada pelo seu coordenador, o Sr. Carlos Martins.

De muitas dezenas, elegi um haicai. Além dele, selecionei outros cinco que considerei bons e sobre os quais primeiramente discorrerei.

 

O som das matracas

dá início à procissão —

Sexta-feira Santa

Mônica Monnerat

 

Dia da Paixão —

o penitente cansado

se apoia na cruz

Renan Sarajevo

 

Os dois haicais acima citados são um bom exemplo de contenção. À primeira vista, parecem meramente descritivos e pouco interessantes. Mas, notem, sem ênfase são exatamente o que devem ser! Têm – nem mais nem menos – o suficiente que se espera de um verdadeiro haiku.

Matraca é um pedaço de madeira com uma plaqueta de ferro e argolas, as quais agitadas em torno do eixo fazem barulho peculiar. Isso substitui, em dias penitenciais, o sino – que não pode ser tangido na Sexta-feira Santa. Em meu convento a ouvimos fartamente, por estes dias; éramos acordados por ela e assim chamados para todos os ofícios e orações. Nas procissões do Senhor Morto é ela que toca, tristemente, como aí foi dito. No aludido haicai, podemos escutar seu soar pungente.

O segundo, mostra com muita graça a cena corriqueira de um desses momentos do Dia da Paixão: o penitente cansado, apoiado na cruz. Podemos sentir e partilhar seu cansaço. É tudo tão simples e humano, que nada se pode acrescentar ou tirar deste haicai! É também interessante a inversão dos papeis: não é mais o homem que carrega a cruz, mas a cruz que parece carregar o homem.

Os dois haicais que se seguem pertencem ao mesmo autor:

 

Sexta-feira Santa —

A cidadezinha acorda

com o sino mudo

 

Sexta-da-Paixão —

Pelo cortejo o cãozinho

segue o Nazareno

George Goldberg

  

São haicais muito bons, como soe acontecer a este haijin! Originalmente, o primeiro verso do primeiro haicai havia sido escrito assim: “Outra Sexta Santa”. Mas eu o corrigi[1] para “Sexta-feira Santa”. É claro que ele deve ter tido suas razões para escrever “Outra”, mas subjetivíssimas para o interlocutor. Soou-me como interferência do “eu”, uma ponderação ou lembrança de outras Sextas da Paixão, fragilizando – no caso em tela – a força do kigo, sugerindo até lamúria ou tédio de “mais uma” Sexta-feira Santa. No seu poema, porém, não há lugar para “outras”, senão esta sexta-feira única e irrepetível. Quase o sentimento do que na Cerimônia do Chá queremos expressar, quando dizemos: “Ichi-go ichi-e (一期一会)”.

A cidadezinha desperta, como sempre, mas desta vez não pelo sino – pois sinos cristãos não tocam na Sexta-feira Santa e é o único dia do ano em que não se celebra Missa, mas tem-se no lugar a Ação Litúrgica das três horas da tarde, além de paraliturgias e devoções populares.

Este haicai é belo pelo teor bucólico, puro, simples. Há nele um poderoso efeito sinestésico.

Podemos sentir a solidão sonora de São João da Cruz, ouvir o som do silêncio.

Evoca-se nos versos o estranhamento daquilo que se faz notar pela ausência. Ao dizer “sino mudo”, arrasta-nos para um abismo de silêncio...

O segundo haicai é pura graça! No cortejo do Senhor Morto, este é seguido por um... cão! Isto é muito vivencial, especialmente nas procissões dos interiores do Brasil, onde cães entram nas igrejas e seguem as procissões. Este haicai é puro encanto!

E o que dizer da escolha do verbo “seguir”, de teologia profunda e muito cara aos fiéis (seguidores) de Jesus, o Nazareno? É sutil, genial, dizer que um “cãozinho” segue o Nazareno, e não as beatas ou os homens piedosos da procissão. Fez-me lembrar do grande Santo Antônio que, não encontrando dignos ouvintes entre os humanos, pregou aos peixes.[2]

O próximo haicai tem algo de hermético, pareceu-me o de leitura mais difícil e problemática:

 

sexta-feira santa —

a árvore pequenina

curva-se ao vento

Fernando Kozu

 

À descuidada escuta, este haicai seria reprovável. O que se diz após o kigo é aplicável a outros tantos, não é? Felizmente, quando recitamos um haicai, nós o dizemos duas vezes. Em algumas culturas da antiguidade, quando se dizia o mesmo nome duas vezes, era para que se escutasse bem, pelos dois ouvidos, sem sombra de dúvida ou ambiguidade. Explicarei como bateu em mim o haicai...

Nos hinos antiquíssimos que cantamos em nossos conventos na Semana Santa, sobretudo na Sexta da Paixão, referimo-nos à cruz como “árvore”. É possível que o autor deste haiku não saiba disso e tenha apenas querido descrever o que viu em fortuito acontecimento de sua Sexta-feira Santa, a saber, a intempérie daquele dia em que, sob a chuva, uma pequena árvore se curvou ao vento. Mas é como uma sutil alusão à cruz – que é cerimonialmente beijada e adorada na Sexta-feira Santa, às três horas da tarde, pelos cristãos de todo o mundo – que se pode melhor ler seu poema.

Citarei alguns trechos dos hinos que se cantam nos mosteiros cristãos, neste dia:

“Do Rei avança o estandarte, / fulge o mistério da Cruz, / onde por nós foi suspenso / o autor da vida, Jesus”. E logo nos dirigimos a ela, à cruz, com as palavras: “Árvore esplêndida e bela, / de rubra púrpura ornada, / de os santos membros tocar / digna, só tu foste achada” (Hino das Vésperas – Semana Santa). A rubra púrpura é o sangue de Cristo, derramado, e só a árvore/cruz é digna de tocar o corpo do Homem Deus.

Depois se diz em outra hora litúrgica: “Cantem meus lábios a luta / que sobre a cruz se travou”... E alude-se à antiga árvore do Paraíso e ao primitivo casal, Adão e Eva, feridos de morte pelo fruto da primeira árvore. Ergue-se, assim, a cruz: “outra árvore, / para curar-nos do mal” (Ofício das Leituras – Semana Santa).

Mais tocante ainda é a poesia do hino da manhã: “Ó Cruz fiel, sois a árvore / mais nobre em meio às demais, / que selva alguma produz / com flor e frutos iguais”. A flor e o novo fruto são agora o próprio Cristo, que vem reverter o dano da queda decorrente daquele outro comido por Adão e Eva, na árvore do Paraíso, do mito narrado no Gênesis, o primeiro livro da Bíblia.

Por fim, a Liturgia das Horas no mesmo hino da manhã faz esta súplica patética à cruz, pedindo que ela se incline e torne-se macia para não machucar mais o corpo de Jesus: “Árvore, inclina os teus ramos, / abranda as fibras mais duras. / A quem te fez germinar / minora tantas torturas. / Leito mais brando oferece / ao Santo Rei das alturas” (Hino das Laudes – Semana Santa).

Com algum esforço de imaginação eu vejo, neste haicai, o vento do Espírito que abranda a terrível violência da cruz.

Este haicai também me lembrou uma sentença de Confúcio, nos Analectos: “Quando o vento sopra, a grama se curva”.

E, agora, o último haicai:

 

Sexta-feira Santa —

Ouço o vizinho falar

de peixe na brasa

Sérgio Bernardo

 

Este é, sem dúvida, o mais admirável haicai da rodada. Já no primeiro instante em que o vi, antes mesmo do fim das avaliações, entendi que dificilmente seria sobrepujado por outro. O próprio Bashô, pensei a rir, não hesitaria em assiná-lo.

É um haicai simples. E, como todo bom haicai, dispensa qualquer linha de explicação. Um haicai que precisa de explicação, não é um bom haicai. Este, pode ser sorvido até pela menor das crianças.

Mas foge do lugar comum do que se convenciona expressar de piedade cristã em haicais deste kigo.

Aqui temos um dia de silêncio, por isso se escuta melhor o vizinho. Por tradição faz-se jejum, a comida deve ser absolutamente austera. Comer carne no dia da Paixão de Cristo é, para os antigos, uma violação gravíssima dos preceitos divinos. A carne é substituída por peixe, o pão dos pobres.

Este haicai traz uma notação totalmente corriqueira da vida em um dia considerado importante no calendário do Ocidente, ainda de grande impacto – religioso ou social – em nossa cultura e vivência. Quase sem querer se escuta um pouco da intimidade do vizinho, ruídos de sua vida banal, como é a de toda gente. Queria muito que lembrassem quão importante é o exercício de escuta no haicai!      

A alusão do “peixe na brasa”, especialmente em um haicai do dia em que se celebra a Morte de Cristo, pareceu-me de uma delicadeza e bom gosto inigualáveis. Uma pessoa vulgar diria “carne na brasa”, que é sinônimo de churrasco, se pensasse neste dia como um feriado qualquer. Mas se este é um haicai que versa sobre a Paixão, prefigura de maneira contida a explosão da iminente alegria da Ressurreição...

No último capítulo do Evangelho de João, quando Jesus aparece ressuscitado à margem do lago de Tiberíades e os discípulos estupefatos percebem-no redivivo: “viram brasas acesas, tendo por cima peixe e pão” (Jo 21,9).  Começa, então, a Festa da Páscoa.

Ao terminar este comentário da seleção pessoal da rodada dos haicais de Sexta-feira Santa do Grêmio Zen, sinto um quê de desgosto: o de – transcorridos os dias de penitência da Quaresma e Semana Santa – eu não ter sido feliz e digno de escrever algo que ao menos tocasse os pés do haicai que acabei de avaliar.

Na Sexta-feira Santa, a solene Ação Litúrgica inicia com o padre em paramentos rubros entrando em silêncio na Igreja, exatamente às três horas da tarde. Ele se prostra diante do altar que está desnudo, com o rosto por terra, enquanto toda a assembleia se ajoelha, ficando algum tempo em silêncio. É assim que começa a cerimônia e isso acontece apenas uma vez no ano... Esta prostração, feita pelo sacerdote no Dia da Paixão, representa a entrega e o despojamento de Cristo, que dali a alguns minutos será crucificado e morrerá. Este ano, celebrei-o em um convento de amáveis freiras. O único haicai que me veio foi este, paupérrimo, dificilmente compreendido por quem não leia a nota de explicação ou seja padre:

 

Sexta-feira Santa.

Que duro o chão da capela

das nossas irmãs!

Seishin

 

 

Lua da Páscoa de 2025

  



[1] É comum, na tradição do haicai, aquele que tem autoridade ou a quem é conferido o direito – por exemplo, entre mestre e discípulo ou numa reunião de pares – ser feita, quando necessária, a correção de um haiku. Isso é estranho ao entendimento ocidental de poesia e direito autoral. Mas o haicai praticado em nossos círculos é assim e intrinsecamente coletivo.

[2] Cf. Sermão de Santo Antônio aos Peixes, do Padre Antônio Vieira, pregado em S. Luís do Maranhão, no Brasil, em 13 de junho de 1654, uma das primorosas obras da literatura de língua portuguesa.

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