ÁRVORE ESPLÊNDIDA...
Rodada de haicais, sobre a
Sexta-feira Santa, do Grupo Zen do Haicai. Avaliação que me foi solicitada pelo
seu coordenador, o Sr. Carlos Martins.
De muitas dezenas, elegi um haicai.
Além dele, selecionei outros cinco que considerei bons e sobre os quais primeiramente
discorrerei.
O
som das matracas
dá
início à procissão —
Sexta-feira
Santa
Mônica Monnerat
Dia
da Paixão —
o
penitente cansado
se
apoia na cruz
Renan
Sarajevo
Os dois haicais acima citados são
um bom exemplo de contenção. À primeira vista, parecem meramente descritivos e
pouco interessantes. Mas, notem, sem ênfase são exatamente o que devem ser! Têm
– nem mais nem menos – o suficiente que se espera de um verdadeiro haiku.
Matraca é um pedaço de madeira
com uma plaqueta de ferro e argolas, as quais agitadas em torno do eixo fazem
barulho peculiar. Isso substitui, em dias penitenciais, o sino – que não pode
ser tangido na Sexta-feira Santa. Em meu convento a ouvimos fartamente, por estes
dias; éramos acordados por ela e assim chamados para todos os ofícios e
orações. Nas procissões do Senhor Morto é ela que toca, tristemente, como aí
foi dito. No aludido haicai, podemos escutar seu soar pungente.
O segundo, mostra com muita graça
a cena corriqueira de um desses momentos do Dia da Paixão: o penitente cansado,
apoiado na cruz. Podemos sentir e partilhar seu cansaço. É tudo tão simples e
humano, que nada se pode acrescentar ou tirar deste haicai! É também interessante
a inversão dos papeis: não é mais o homem que carrega a cruz, mas a cruz que parece
carregar o homem.
Os dois haicais que se seguem
pertencem ao mesmo autor:
Sexta-feira
Santa —
A
cidadezinha acorda
com
o sino mudo
Sexta-da-Paixão
—
Pelo
cortejo o cãozinho
segue o Nazareno
George
Goldberg
São haicais muito bons, como soe
acontecer a este haijin! Originalmente, o primeiro verso do primeiro haicai
havia sido escrito assim: “Outra Sexta Santa”. Mas eu o corrigi[1]
para “Sexta-feira Santa”. É claro que ele deve ter tido suas razões para
escrever “Outra”, mas subjetivíssimas para o interlocutor. Soou-me como
interferência do “eu”, uma ponderação ou lembrança de outras Sextas da Paixão,
fragilizando – no caso em tela – a força do kigo,
sugerindo até lamúria ou tédio de “mais uma” Sexta-feira Santa. No seu poema,
porém, não há lugar para “outras”, senão esta
sexta-feira única e irrepetível. Quase o sentimento do que na Cerimônia do Chá
queremos expressar, quando dizemos: “Ichi-go ichi-e (一期一会)”.
A cidadezinha desperta, como
sempre, mas desta vez não pelo sino – pois sinos cristãos não tocam na
Sexta-feira Santa e é o único dia do ano em que não se celebra Missa, mas
tem-se no lugar a Ação Litúrgica das três horas da tarde, além de paraliturgias
e devoções populares.
Este haicai é belo pelo teor
bucólico, puro, simples. Há nele um poderoso efeito sinestésico.
Podemos sentir a solidão sonora
de São João da Cruz, ouvir o som do silêncio.
Evoca-se nos versos o
estranhamento daquilo que se faz notar pela ausência. Ao dizer “sino mudo”,
arrasta-nos para um abismo de silêncio...
O segundo haicai é pura graça! No
cortejo do Senhor Morto, este é seguido por um... cão! Isto é muito vivencial,
especialmente nas procissões dos interiores do Brasil, onde cães entram nas
igrejas e seguem as procissões. Este haicai é puro encanto!
E o que dizer da escolha do verbo
“seguir”, de teologia profunda e muito cara aos fiéis (seguidores) de Jesus, o
Nazareno? É sutil, genial, dizer que um “cãozinho” segue o Nazareno, e não as
beatas ou os homens piedosos da procissão. Fez-me lembrar do grande Santo
Antônio que, não encontrando dignos ouvintes entre os humanos, pregou aos
peixes.[2]
O próximo haicai tem algo de
hermético, pareceu-me o de leitura mais difícil e problemática:
sexta-feira
santa —
a
árvore pequenina
curva-se
ao vento
Fernando Kozu
À
descuidada escuta, este haicai seria reprovável. O que se diz após o kigo é aplicável a outros tantos, não é?
Felizmente, quando recitamos um haicai, nós o dizemos duas vezes. Em algumas
culturas da antiguidade, quando se dizia o mesmo nome duas vezes, era para que
se escutasse bem, pelos dois ouvidos, sem sombra de dúvida ou ambiguidade. Explicarei
como bateu em mim o haicai...
Nos
hinos antiquíssimos que cantamos em nossos conventos na Semana Santa, sobretudo
na Sexta da Paixão, referimo-nos à cruz como “árvore”. É possível que o autor
deste haiku não saiba disso e tenha apenas querido descrever o que viu em
fortuito acontecimento de sua Sexta-feira Santa, a saber, a intempérie daquele
dia em que, sob a chuva, uma pequena árvore se curvou ao vento. Mas é como uma
sutil alusão à cruz – que é cerimonialmente beijada e adorada na Sexta-feira
Santa, às três horas da tarde, pelos cristãos de todo o mundo – que se pode
melhor ler seu poema.
Citarei
alguns trechos dos hinos que se cantam nos mosteiros cristãos, neste dia:
“Do
Rei avança o estandarte, / fulge o mistério da Cruz, / onde por nós foi
suspenso / o autor da vida, Jesus”. E logo nos dirigimos a ela, à cruz, com as
palavras: “Árvore esplêndida e bela, / de rubra púrpura ornada, / de os santos
membros tocar / digna, só tu foste achada” (Hino das Vésperas – Semana Santa). A
rubra púrpura é o sangue de Cristo, derramado, e só a árvore/cruz é digna de
tocar o corpo do Homem Deus.
Depois
se diz em outra hora litúrgica: “Cantem meus lábios a luta / que sobre a cruz
se travou”... E alude-se à antiga árvore do Paraíso e ao primitivo casal, Adão
e Eva, feridos de morte pelo fruto da primeira árvore. Ergue-se, assim, a cruz:
“outra árvore, / para curar-nos do mal” (Ofício das Leituras – Semana Santa).
Mais
tocante ainda é a poesia do hino da manhã: “Ó Cruz fiel, sois a árvore / mais
nobre em meio às demais, / que selva alguma produz / com flor e frutos iguais”.
A flor e o novo fruto são agora o próprio Cristo, que vem reverter o dano da
queda decorrente daquele outro comido por Adão e Eva, na árvore do Paraíso, do
mito narrado no Gênesis, o primeiro livro da Bíblia.
Por
fim, a Liturgia das Horas no mesmo hino da manhã faz esta súplica patética à
cruz, pedindo que ela se incline e torne-se macia para não machucar mais o
corpo de Jesus: “Árvore, inclina os teus ramos, / abranda as fibras mais duras.
/ A quem te fez germinar / minora tantas torturas. / Leito mais brando oferece
/ ao Santo Rei das alturas” (Hino das Laudes – Semana Santa).
Com
algum esforço de imaginação eu vejo, neste haicai, o vento do Espírito que
abranda a terrível violência da cruz.
Este
haicai também me lembrou uma sentença de Confúcio, nos Analectos: “Quando o
vento sopra, a grama se curva”.
E,
agora, o último haicai:
Sexta-feira
Santa —
Ouço
o vizinho falar
de
peixe na brasa
Sérgio
Bernardo
Este é, sem dúvida, o mais
admirável haicai da rodada. Já no primeiro instante em que o vi, antes mesmo do
fim das avaliações, entendi que dificilmente seria sobrepujado por outro. O
próprio Bashô, pensei a rir, não hesitaria em assiná-lo.
É um haicai simples. E, como todo
bom haicai, dispensa qualquer linha de explicação. Um haicai que precisa de
explicação, não é um bom haicai. Este, pode ser sorvido até pela menor das
crianças.
Mas foge do lugar comum do que se
convenciona expressar de piedade cristã em haicais deste kigo.
Aqui temos um dia de silêncio,
por isso se escuta melhor o vizinho. Por tradição faz-se jejum, a comida deve
ser absolutamente austera. Comer carne no dia da Paixão de Cristo é, para os
antigos, uma violação gravíssima dos preceitos divinos. A carne é substituída
por peixe, o pão dos pobres.
Este haicai traz uma notação
totalmente corriqueira da vida em um dia considerado importante no calendário
do Ocidente, ainda de grande impacto – religioso ou social – em nossa cultura e
vivência. Quase sem querer se escuta um pouco da intimidade do vizinho, ruídos de
sua vida banal, como é a de toda gente. Queria muito que lembrassem quão
importante é o exercício de escuta no haicai!
A alusão do “peixe na brasa”,
especialmente em um haicai do dia em que se celebra a Morte de Cristo,
pareceu-me de uma delicadeza e bom gosto inigualáveis. Uma pessoa vulgar diria “carne
na brasa”, que é sinônimo de churrasco, se pensasse neste dia como um feriado
qualquer. Mas se este é um haicai que versa sobre a Paixão, prefigura de
maneira contida a explosão da iminente alegria da Ressurreição...
No último capítulo do Evangelho
de João, quando Jesus aparece ressuscitado à margem do lago de Tiberíades e os
discípulos estupefatos percebem-no redivivo: “viram brasas acesas, tendo por
cima peixe e pão” (Jo 21,9). Começa,
então, a Festa da Páscoa.
Ao terminar este comentário da
seleção pessoal da rodada dos haicais de Sexta-feira Santa do Grêmio Zen, sinto
um quê de desgosto: o de – transcorridos os dias de penitência da Quaresma e
Semana Santa – eu não ter sido feliz e digno de escrever algo que ao menos tocasse
os pés do haicai que acabei de avaliar.
Na Sexta-feira Santa, a solene Ação
Litúrgica inicia com o padre em paramentos rubros entrando em silêncio na
Igreja, exatamente às três horas da tarde. Ele se prostra diante do altar que
está desnudo, com o rosto por terra, enquanto toda a assembleia se ajoelha,
ficando algum tempo em silêncio. É assim que começa a cerimônia e isso acontece
apenas uma vez no ano... Esta prostração, feita pelo sacerdote no Dia da
Paixão, representa a entrega e o despojamento de Cristo, que dali a alguns
minutos será crucificado e morrerá. Este ano, celebrei-o em um convento de amáveis
freiras. O único haicai que me veio foi este, paupérrimo, dificilmente
compreendido por quem não leia a nota de explicação ou seja padre:
Sexta-feira
Santa.
Que
duro o chão da capela
das
nossas irmãs!
Seishin
Lua
da Páscoa de 2025
[1]
É comum, na tradição do haicai, aquele que tem autoridade ou a quem é conferido
o direito – por exemplo, entre mestre e discípulo ou numa reunião de pares –
ser feita, quando necessária, a correção de um haiku. Isso é estranho ao
entendimento ocidental de poesia e direito autoral. Mas o haicai praticado em
nossos círculos é assim e intrinsecamente coletivo.
[2]
Cf. Sermão de Santo Antônio aos Peixes, do Padre Antônio Vieira, pregado em S.
Luís do Maranhão, no Brasil, em 13 de junho de 1654, uma das primorosas obras
da literatura de língua portuguesa.