APONTAMENTOS
「瓶わるる夜の氷のねざめかな」
kame
waruru yoru no kôri no nezame kana
parte-se o vaso
ah... súbito despertar
do gelo da noite
Bashô
Matsuo Bashô (1644-1694)
é o mais venerado poeta de haicai do Japão.
Uma vez, ensinando-me
haicai, minha mestra citou este em japonês.
Parece que alguém acorda,
no meio da noite, por causa do barulho do jarro que se quebra devido ao
gelo.
Isso também sugere despertar
em outro nível de consciência.
Este poema me toca
profundamente!
*
「岩鼻やこゝにもひとり月の客」
iwahana ya koko ni mo hitori tsuki no
kyaku
no cimo da rocha —
um convidado da lua
também solitário
Kyorai
Kyorai (1651-1704) foi um
dos mais notáveis discípulos de Bashô.
Neste haiku, ele vislumbra
alguém, tão sozinho quanto ele, a contemplar a lua em uma noite no rochedo.
A lua é anfitriã...
No livro de notas de Kyorai,
que nunca foi publicado em português, há interessante comentário dele e de
Bashô sobre este haicai.
*
「朝顔やつるべとられて貰い水」
asagao
ya tsurube torarete morai mizu
flores de ipomeia —
presas ao balde do poço
vou mendigar água
Chiyo
Chiyojo (1703-1775), poetisa
de haicai do período Edo e monja budista.
O haiku sugere que alguém
vai ao poço buscar água e depara-se com o balde tomado pelos ramos da ipomeia.
Por compaixão, não quebra a ramagem e deixa as flores onde estão. Vai, assim, pedir
água a outrem...
Quando ouvi falar desta
flor pela primeira vez, foi através de amigos japoneses e em língua japonesa.
Assim, eu não fazia a menor ideia de seu nome em minha própria língua e só
pensava nela em japonês. Um pouco depois, descobri que é ipomeia ou
glória-da-manhã.
Esta flor tem um
significado especial para os homens do chá, por causa de uma história
envolvendo Toyotomi Hideyoshi e o grande mestre da Cerimônia do Chá, Sen Rikyû.
Mas isso não tem relação com
o belo haiku de Chiyojo!...
*
「おちこちに 瀧の音聞く若葉かな」
ochi
kochi ni taki no oto kiku wakaba kana
o som da cascata
ouve-se aqui e acolá...
a folhagem nova
Buson
Buson (1716-1784), foi um
haijin e pintor do período Edo.
Não sei explicar o fascínio
que exercem sobre mim as folhas novas!
Uma vez, a luz do sol da
manhã sobre as folhas novas de uma amendoeira causou-me inapagável impressão...
Este haiku é puro frescor!
*
「盗人に 取り残されし 窓の月」
nusutto
ni torinokosareshi mado no tsuki
o ladrão se foi
e só deixou para trás
lua na janela
Ryōkan
Ryōkan (1758-1831) foi um
haijin e monge budista.
Eu acho que este é o seu haicai
mais conhecido.
Tem uma história, talvez
inventada, sobre esse poema: um ladrão invadiu a cabana de Ryōkan, no pé da
montanha. Ele era um pobre monge, não tinha nada. Mas, gentilmente, agradeceu a
visita e deu as próprias roupas do corpo ao rapaz, que veio de tão longe, para
que não voltasse sem nada. Depois, nu e sozinho, lamentou que não pudesse ter
dado também a lua!
*
「ただ居れば居るとて雪のふりにけり」
tada
oreba oru tote yuki no furi ni keri
estar aqui
tão somente aqui.
a neve cai
Issa
Kobayashi Issa (1763-1827)
é um dos mais queridos mestres de haicai do Japão e de todo o mundo.
Ele é o favorito da minha
mestra, que me ensinou tantas vezes sobre sua pobreza e despojamento.
Este haiku é o meu
preferido de Issa.
*
「茶の花や利休の像を床の上」
cha
no hana ya Rikyuu no zou wo yuka no ue
flores de chá —
a imagem de Rikyû
no tokonoma
Shiki
Shiki (1867-1902),
crítico literário e renovador do haicai.
Não sei o contexto desse
haiku, mas penso que ao ver as flores de chá teria se lembrado de Rikyû naquela
imagem clássica...
Traduzi yuka por tokonoma, um lugar de honra nas salas tradicionais japonesas.
*
「涸滝を見上げて着きぬ移民船」
karetaki
wo miagete tsukinu iminsen
a cascata seca
vista ao alto na chegada
da nau imigrante
Hyōkotsu
Shūhei Uetsuka
(1876-1935), considerado “Pai da Imigração Japonesa”, chegou em nossa terra a
bordo do Kasato Maru, navio que trouxe os primeiros imigrantes do Japão ao
Brasil. Isso foi em 1908. Seu nome de haicaísta é Hyōkotsu.
Diz-se que, momentos
antes do navio aportar em Santos, ele escreveu esse antológico haiku.
O mestre Goga tem uma
tradução famosa deste haicai, mil vezes superior a minha: “A nau imigrante / chegando: vê-se lá no alto / a cascata seca.”
*
「金亀子擲つ闇の深さかな」
koganemushi nageutsu yami no fukasa kana
besouro dourado
jogado na escuridão
ah... quão densa treva!
Kyoshi
Kyoshi Takahama
(1874-1959) foi discípulo de Shiki e chefe da lendária revista de haiku, Hototogisu.
*
「雷や四方の樹海の子雷」
kaminari
ya yomo no jukai no kogaminari
súbito trovão —
dos cantos todos da mata
bradam trovõezinhos
Nenpuku
Literalmente: “trovão! –
e – dos quatro cantos do mar de árvores, trovõezinhos (eco)”.
Eu acredito que o próprio
deus Tupã tenha reverenciado o sublime mestre Nenpuku, por este espantoso haiku!
Kenjiro Sato (1898-1979),
seu nome de nascimento, veio do Japão para o Brasil em 1927. Foi discípulo de
Kyoshi e mestre do mestre Goga. Nenpuku é seu nome haicaístico. Teve no Brasil
milhares de discípulos, entre os colonos.
Nunca escreveu nada em
português, mas fez alguns dos haicais mais belos do século XX com kigos da
natureza do Brasil.
É lamentável que não
tenhamos muitos haicais seus traduzidos!
Nenpuku é um poeta de
haicai por quem eu tenho verdadeira adoração!
Seishin
清心
Diário,
notas
íntimas.
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A tradução do haiku de
Shūhei Uetsuka feita pelo mestre Goga está no livro “O Haicai no Brasil”, de H.
Masuda Goga, Editora Oriento, São Paulo, 1988. O original do haiku de Nenpuku
retirei do livro “Haiku & Haikai”, de Akiku Kurihara, Service Miyagawa,
2014. Os demais originais, de sites de haiku do Japão, pois são de domínio
público.