NENPUKU SATO - LIVRO II


Nenpuku Kushū 2

 

 

念腹句集 第二

Nenpuku Kushū 2

 

Alguns haicais de Nenpuku Sato (1898-1979), traduzidos por mim, em meu diário. Pertencem ao segundo volume “Nenpuku Kushū”, publicado em 1961. As notas que aparecem são pessoais, explicitam escolhas ou deficiências de minhas versões, além de estudos sobre o kigo.  

 

Primavera

 

[1]

cafezal em flor

eis que se assoma o alvor

da lua que nasce

 

[2]

no largo caminho

o desvio para um lado —

flores de café

 

[3]

lua de primavera

por que tão obstinada

em não querer ir

 

[4]

dentes-de-leão —

ao me apear do cavalo

pelos ares vão

 

[5]

desce pela cerca

enfeitada de tulipas

bando de periquitos

 

[6]

os filhos cresceram

a viúva resfriada

numa primavera

 

[7]

encontro de haiku

a estudar japonês

luz de primavera

 

[8]

vento de primavera —

aconchega a criancinha

e sua guirlanda

 

[9]

nuvem de pássaros

um ônibus rural

prestes a partir

 

[10]

na mira do rifle

a lua de primavera

caça de tatu

 

É cinematográfico esse haiku.

Lit.: a lua de primavera que de repente vai surgindo...

 

[11]

pastorando o gado

pra reuni-lo e no alto

lua de primavera

 

[12]

primavera finda

o diário da esposa

no meio da noite

 

Lit.: depressão da primavera. No nosso dicionário de termos sazonais há primavera avançada, primavera se vai, primavera fenece, findar da primavera, primavera saudosa etc. Têm significados poéticos próprios, com variações muito sutis. 

 

[13]

vento de primavera

já velho neste país

sem uma bengala

 

[14]

brilho de queimada

na colina da colônia

quatro ou cinco ranchos

 

[15]

toma uma bronca

por ter chegado atrasado

pra arar a terra

 

[16]

cavalo branco

comendo aqui e acolá

a grama velha

 

O coração desse haiku é a grama velha, furukusa. Vi em um Saijiki do Japão que esse kigo é do começo da primavera, quando a grama antiga fica misturada com os brotos novos.

 

Verão

 

[17]

no lombo do búfalo

o estalo do chicote

arroja a subida

 

[18]

o navio atraca

do outro lado da ilha

do mar de verão

 

[19]

as mangas caem

depois do redemoinho

uma após outra

 

[20]

a perambular

enquanto faz o pregão

cerveja cerveja

 

[21]

campo de verão

no lago e casa de chá

só tem japonês

 

O termo usado é hôjin que se diz do compatriota, especialmente no exterior. Sempre que ele escreve “casa de chá”, no contexto brasileiro, sinto que pode ser também quiosque ou bar de vila...

 

[22]

jardim de verão —

pavão de intenso azul

e arara rubra

 

[23]

ao comprar melão

o pensamento me vem

em katakana

 

O katakana é um dos alfabetos japoneses, o silabário usado para escrever palavras estrangeiras. Esse fenômeno do pensamento é interessante... Quando eu penso em japonês é mais concreto. Se, por exemplo, tenho dúvida de alguma pronúncia, visualizo um dos silabários mentalmente e encontro o som inequívoco. Eu vejo o som. Ou vejo a coisa esboçada em kanji, num quadro mental exato. Já quando eu penso em português é mais aberto, abstrato e conceitual. Digo-o de modo analítico, sob determinado aspecto do meu exercício de pensamento.

 

[24]

desde cedinho

à sombra da grande árvore

tecem balaios

 

[25]

à sombra da árvore

um canário na gaiola

enquanto eu leio

 

Lit.: à sombra verde, sombra fresca das árvores no verão. Optei por dizer “sombra da árvore”, mas não se deve confundir com kokage... O sentimento é outro!

 

[26]

na cervejaria

a presença de um homem

que não tem um braço

 

[27]

árvore de acácia

sob sua sombra encontro

ameno refúgio

 

[28]

curte ao ar livre

a mocinha da colônia

o frescor da noite

 

[29]

colônia aliança

a sopa de beringela

cozida em missô

 

[30]

após tomar banho

adormece nos meus braços

meu filho caçula

 

O kigo é gyôzui, banho de banheira ou bacia. Ele dá banho no filho e adormece(m) abraçado(s).

 

[31]

que flores são estas

sobre a mesa da varanda

final do verão

 

[32]

grupo de crianças

alinhado em uníssono

rezando por chuva

 

Outono

 

[33]

nuvens de sardinha

um trem a vapor veloz

a minha carroça

 

As “nuvens de sardinha” são nuvens próprias do céu de outono. Creio que têm esse nome porque se assemelham a cardumes. As pessoas do Japão que viviam próximas ou que sobreviviam do mar devem ter criado essa designação, porque é assim que nascem os nomes populares. São nuvens “escamadas”, nuvens de cirro na linguagem da meteorologia. Na minha terra, onde as pessoas estavam mais ligadas à pecuária, os antigos diziam “céu de coalhada”, porque parece com um delicioso derivado do leite de vaca que é comum na região. E isso me fez lembrar que, quando eu era criança, imaginava poder comer o céu. No Brasil, os haijins falam do céu e das nuvens de outono de diversas formas igualmente poéticas. Mas em português não dizemos “nuvens de sardinha”.

 

[34]

em noite assim

também o meu cavalo

brilha como laca

 

[35]

o nadador

do grande rio de outono

chama seu cão

 

[36]

nome de pessoa

a cidade de imigrantes

ah via láctea

 

[37]

esperando a lua

me apeio e amarro o cavalo

e deixo o chicote

 

[38]

não comprei presente

mas não vim de mãos vazias

comprei uns caquis

 

[39]

percorro sozinho

o caminho da aldeia

sob a via láctea

 

[40]

ó via láctea

onde quer que eu estivesse

envelheceria

 

Dizemos Via Láctea, caminho de leite. Os japoneses dizem ama no gawa, rio do céu. Ambos são bonitos e sumamente poéticos. Há um soneto muito conhecido de Olavo Bilac sobre a Via Láctea, expressão máxima de sua poesia para os brasileiros. Eu também me lembro de uma música de Legião Urbana com esse tema, que era a minha banda de rock favorita na adolescência.

 

[41]

colheita abundante

a mocinha da aldeia

se chama Maria

 

[42]

embriagado

o senhor dos crisântemos

em seu cavalo

 

[43]

um negro acena

com magnanimidade

colhendo algodão

 

[44]

um cliente toca

piano no botequim

nuvens de sardinha

 

[45]

totalmente bêbado

não sei se é choro de cervo

ou ave da noite

 

Bêbado de kashu, cachaça. O kigo é o bramido do cervo, palavra sazonal de outono. 

 

[46]

comendo grelhadas

berinjelas de outono

rango do colono

 

As berinjelas de outono são menores que as de verão, porém mais saborosas. No original está explícito que é a refeição do fim do dia.

 

[47]

no chão a sela

na parede o berrante

a lua brilha

 

De cena como esta que também vi e vivi, escrevi: ‘sobre o berrante / esquecido no alpendre / luar de outono’.

 

[48]

aves migratórias

até o cavalo para

para observá-las

 

Inverno

 

[49]

saquê aquecido  —

nós podemos partilhar

a grana da bolsa

 

O saquê quente é próprio para os dias frios e é uma delícia. Eu pago? Dividir a conta? Rachar? Algo tipo o que nós homens falamos, entre iguais, ao beber...

 

[50]

luz de inverno

o bigode do tigre

bem eriçado

 

O kanji de tigre ao modo coloquial pode significar “bêbado”. O kanji de bigode é também “barba” etc. Assim, pode sugerir de modo pitoresco – falando de si mesmo ou de outrem – um pinguço com a barba por fazer, malcuidada, a crescer de maneira relaxada. Creio que é proposital essa ambiguidade.

 

[51]

cai intensamente

na cidade arborizada

chuva de inverno

 

[52]

em desarmonia

esperam a primavera

marido e mulher

 

[53]

em traje de inverno

na sala japonesa

a ilustre hóspede

 

[54]

sob a chuva

passa por mim e minha esposa

um transeunte

 

A palavra sazonal é shigure, chuva do final do outono ou início do inverno.

 

[55]

a pele queimada

porque não usou chapéu

nas férias de inverno

 

[56]

eis que as lembranças

do frio lá do Japão

vão se apagando

 

[57]

montanha dormente

japonesinho adotado

da casa de chá

 

A montanha adormecida é um kigo de inverno. Nós haicaístas brasileiros geralmente dizemos “serra de inverno”.

 

[58]

afã solitário

o lenhador da montanha

com o seu machado

 

Lit.: cortar a montanha, um kigo de inverno. No Japão antigo significava cortar lenha da montanha para o Ano Novo, o que não faria sentido no Brasil onde a estação é inversa. Cortamos lenha no inverno brasileiro, além do uso comum, para as fogueiras juninas, por exemplo. Em Nenpuku, a acepção é brasileira e originalíssima.

 

[59]

aração de inverno

hoje também estão nus

os meninos negros

 

[60]

chego a cavalo

e vou esperar a balsa

junto à fogueira

 

Se preferir leia em terceira pessoa...

 

[61]

aqui no Brasil

as hortaliças de inverno

tornam-se lilases

 

[62]

vinte e cinco anos

assim faz-se nossa história

dia de Hyōkotsu

 

Hyōkotsu foi o nome haicaístico de Shūhei Uetsuka, "Pai da Imigração Japonesa no Brasil". Seu memorial (aniversário de morte) é em 06 de julho. Ele faleceu em 1935. Parece que foi um kigo muito celebrado na colônia, porque vi outros haicais de Nenpuku com essa palavra sazonal.

 

[63]

serra de inverno

vão se apagando as memórias

do velho imigrante

 

A montanha adormecida, o rosto marcado pelo tempo...

 

[64]

montanhas dormentes

aldeões e forasteiros

e mulas de carga

 

***

 

As versões acima apresentadas são transcrições despretensiosas de meu diário. Publicadas aqui, possuem o exclusivo interesse cultural de divulgar Nenpuku Sato em língua portuguesa. Os erros são de minha responsabilidade, posto que traduzi os haicais diretamente do original.

No Nenpuku Kushū 1, as coleções de haicai foram divididas em anos da Era Showa, em blocos de 1927 a 1951. No Nenpuku Kushū 2, em estações: primavera, verão, outono e inverno. No final do volume há o acréscimo de mais ou menos 150 haikus sob o título: “Echigo, Sasaoka, do décimo ano da Era Taishô (1921) à terceira lua do segundo ano da Era Shôwa (março de 1927)”.

 

Seishin

清心

seridoano@gmail.com

 

____________________

 

BIBLIOGRAFIA:

 

1) Nenpuku Kushū 2, segundo volume da coleção de haicais de Nenpuku Sato – mais de 600 haicais – impresso no Japão, no ano 36 da Era Showa (1961). O título da obra em nossa língua seria algo como: “Coletânea de Haicais de Nenpuku”.

2) Dicionário mais consultado para a leitura de kanjis: Jisho.org (japonês-inglês).

3) Para a verificação de kigos brasileiros: Natureza – berço do haicai: kigologia e antologia, de H. Masuda Goga e Teruko Oda, Empresa Jornalística Diário Nippak Ltda., São Paulo, 1996.

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