HAICAIS DE NENPUKU SATO - Parte 2
Parte 2
HAICAIS DE NENPUKU SATO
念腹句集
“Nenpuku Kushū”
[31]
水を打つ腓にのぼる土間の蚤 (p. 151)
mizu o utsu kobura ni
noboru doma no nomi
aguando
o chão batido
enquanto
pulgas sobem
pela
panturrilha
Eu
me pergunto se esse é aquele costume rural de jogar água no terreiro de casa
para baixar a poeira e refrescar o ambiente, ou se o fez para espantar as
pulgas...
Na
Cerimônia do Chá, só quando as pedras do caminho são molhadas é que os
convidados atravessam o jardim para a sala do encontro. Em hipótese alguma
avança-se antes desse sinal do anfitrião. Eu o vi centenas de vezes, inclusive nas
aulas de treino! Mas isso é só uma reminiscência e não tem relação com o
haicai.
[32]
わが部屋の貰ひ明りに來る灯虫 (p. 152)
waga heya no morai akari ni kuru himushi
de
repente o quarto
enche-se
de bichinhos
em torno
da lâmpada
[33]
馬上涼し鞭くれて夜の門を出づ (p. 153)
bajô suzushi
muchi kurete yo no mon o izu
açoito
o cavalo
e
cruzo o portão de noite
pra
tomar a fresca
[34]
囀れる夜のカナリヤや軒納涼 (p.
153)
saezureru yo no kanariya ya noki nôryô
fresca
sob o beiral
cantam
os canarinhos
até
de noite
[35]
鍬を打つ人を再び霧包む (p. 158)
kuwa o utsu hito o futatabi kiri tsutsumu
uma
vez mais
labutando
na enxada
envolto
em névoa
[36]
聲曳いて野の犬歎く月の原 (p.
161)
koe hiite no no inu nageku tsuki no hara
ressoa
por toda
a
planície enluarada
o
lamento do cão
[37]
月細く天氣きまりぬ男鹿鳴く (p. 161)
tsuki hosoku tenki kimarinu ojika naku
a
lua fininha
eis
que o tempo se firma
e
um cervo chora
O
segundo kanji da palavra “clima” está numa forma antiga. Ignoro se a combinação
dos kanjis de macho e veado tem outra leitura além da que fiz. O último kanji é
“bramido”, mas eu quis traduzir por choro.
[38]
誤字多き移民の投句瓢骨忌 (p. 167)
goji ôki imin no tôku hyôkotsu ki
memorial
de Hyōkotsu
tantos
erros de escrita
nos
haicais dos imigrantes
Hyōkotsu
(瓢骨) foi o nome haicaístico de Shūhei Uetsuka,
considerado o "Pai da Imigração Japonesa no Brasil". Já traduzi um
haicai famoso dele. Ele faleceu em 06 de julho de 1935. Seu memorial
(aniversário de morte) seria, portanto, nessa data do inverno brasileiro.
[39]
春の雨むすびて牛の睫毛かな (p. 172)
haru no ame musubite ushi no matsuge kana
chuva de
primavera
até nos
cílios da vaca
pendentes
gotinhas
[40]
凶作の棉摘みかけてなげき合ふ (p. 189)
kyôsaku no wata tsumi kakete nageki au
colheita
ruim
quase
nada se aproveita
do algodoal
Alguém
segura nas mãos o algodão e se lamenta. É um haiku muito triste, como eu o
sinto! No livro há muitos outros que falam das más colheitas. Não era fácil, a vida
dos primeiros imigrantes.
[41]
日焼子の日臭き頬よ頬擦りす (p. 196)
hiyake ko no hi kusaki hô yo hô zuri su
suado do
sol
o rosto
do meu filho
roçando
no meu
No gesto
de carinho, o pai sente o rosto do filho com “cheirinho de sol”, de quem
brincou ao sol. A expressão sugere antes de tudo cheiro, mas também calor e até
brilho, como quando brilhamos de suor. Não sei expressão equivalente em
português.
[42]
旱魃に牧馬も斃れはじめしと (p. 206)
kanbatsu ni bokuba mo taore hajimeshi to
seca
prolongada
até os
cavalos do pasto
estão
morrendo
[43]
森の木菟わが斧近く來て猛る (p. 215)
mori no tsuku waga ono chikaku kite takeru
a coruja
da mata
exasperada
ao sentir
o machado
mais perto
[44]
産すみし牛にビールを飮ますとて (p. 231)
umasumishi ushi ni biiru o nomasu tote
dando à
vaca
que acabou
de parir
cerveja
pra beber
[45]
乳しぼる牛にさし来し初日かな (p. 237)
chichi shiboru ushi ni sashi kishi hatsuhi kana
sol de
ano novo
eu aqui
muito ocupado
em
ordenhar vacas
É o
primeiro nascer do sol do ano novo, que de repente clareia a vaca...
Eu
gosto muito dos seus haicais de vaca! Um dos maiores gênios do século XX,
ordenhando vacas!
Nenpuku
foi lavrador no Brasil, mas estabilizou-se com uma modesta criação de gado. Só
em 1954 deixou o campo, para dedicar-se exclusivamente ao haicai. Teve, por
décadas, coluna de haicai na imprensa. E fundou a revista Kokage.
[46]
蛇蜥蜴からみ搏つなり草の中 (p. 237)
hebi tokage karami utsu nari kusa no
naka
cobra e
lagarto
numa
enroscada luta
sobre a
grama
[47]
凶作を云へば叱りて夫早寢 (p. 239)
kyôsaku o ieba
shikarite tsuma hayane
colheita
ruim
o marido
foi mais cedo
dormir
enfezado
[48]
今日も赤秋暑かりし鞍を解く (p. 247)
kyô mo aka aki atsukarishi kura o toku
no calor
do outono
que se
arrasta hoje também
desencilho
a sela
[49]
クリストの弟子の祠や冬木立 (p. 249)
kurisuto no deshi no hokora ya fuyu kodachi
pequeno
santuário
do
discípulo de Cristo —
floresta
de inverno
[50]
醉うて脱ぐ大きな靴や春灯 (p. 254)
yôte nugu
ôkina kutsu ya shuntô
embriagado
descalçando
as botas —
luz de
primavera
Entenda-se
shuntou como lâmpadas acesas em
noites de primavera.
[51]
没収を免れし和書曝しけり (p. 263)
bosshû o manugareshi washo sarashikeri
salvos do
confisco
os livros
em japonês
sendo
arejados
Na
Segunda Guerra, o Brasil e o Japão estavam em lados opostos. Por isso, os
colonos sofreram duras perseguições e qualquer coisa escrita em língua japonesa
era cerceada. Eu penso que o haicai faz alusão a isso. Ou, talvez, ao fim da
Guerra... quando não foi mais necessário esconder os livros.
Em meu
artigo Flor de Fogo (Brasil Nikkei
Bungaku nº 64. São Paulo: Associação Cultural e Literária Nikkei Bungaku do
Brasil, março de 2020, pp. 69-76), referindo-me a esse período, escrevi:
“Durante a Segunda Guerra Mundial, quando foram rompidas as relações
diplomáticas entre o Brasil e o Japão, as tensões aqui se tornaram
especialmente insuportáveis entre os brasileiros e os japoneses das colônias.
Não obstante, colocando-se acima das divisões da Guerra, os haicaístas de ambos
os lados continuaram de mãos dadas. E quando todas as publicações de língua
japonesa foram proibidas em nosso país, fechando-se suas empresas jornalísticas
e impondo-se hostil silêncio os japoneses, haijins brasileiros divulgaram
ostensivamente haicais na imprensa e através de livros, mesmo sob protestos.”
O mestre
Goga em “O Haicai no Brasil” cita a crítica mordaz de Agripino Grieco: “Por que
os poetas brasileiros, ao invés de imitar haikais, não imitam japoneses que
praticam o harakiri?”
A meu
ver, não se tratava de lados e sim que o haicai estava acima da Guerra.
[52]
茶の村の花茶日和に來しわれ等 (p. 270)
cha no mura no
hana cha biyori ni kishi warera
dia
ensolarado
chá na
vila do chá
eu e
minha turma
Lit.: quando
floresciam as flores de chá na vila do chá...
[53]
墓参して和語を話さぬ移民の子 (p. 271)
hakamairi shite wago o hanasanu imin no ko
visitando
o túmulo
já não
sabe mais falar
a língua
dos pais
No
original está explícito “filho de imigrante” e “idioma japonês”.
[54]
老いてゆく夫に朝寝の妻若し (p. 289)
oite yuku
tsuma ni asane no tsuma wakashi
marido
velho
e mulher
nova que dorme
até bem
tarde
Eu acho
esse haicai muito engraçado! Antigamente, na minha terra também era comum
homens mais velhos casarem-se com mulheres novas. O contrário, porém, era
inadmissível! Esse haicai já foi traduzido para o português por Edson Kenji
Iura, inclusive.
[55]
井戸掘つてゐるを見に来し新移民 (p. 308)
ido hotte iru
o mi ni kishi shin imin
vieram
olhar
como se
cava um poço
novos
imigrantes
[56]
春夜行くポ語を知らねば聞ながし (p. 317)
shun'ya yuku pogo o shiraneba kikinagashi
noite de
primavera
se não
sabe português
apenas
escute
[57]
昨日まで時を惜みし朝寝かな (p. 318)
kinô made toki
o oshimishi asane kana
assim até
ontem
sem ligar
para mais nada
dormindo
até tarde
[58]
ユーカリに覆はれ古き柳かな (p. 321)
yûkari ni ôware furuki yanagi kana
os velhos
salgueiros
agora
estão cercados
pelos
eucaliptos
[59]
舟の發つ洲までをわたる春の水 (p. 322)
fune no tatsu
su made o wataru haru no mizu
um barco
a passar
pelo
banco de areia
lago de
primavera
[60]
耕や廿五年の切株と (p. 324)
tagayasu ya nijûgo nen no kirikabu to
lavrando
a terra —
mais
de vinte e cinco anos
tocos
e restolhos
A
autoironia do poeta neste último haiku do volume é digna de nota.
Muito
obrigado, mestre Nenpuku!
Seishin
清心
(As
traduções são amadoras, não têm fins lucrativos e possuem o exclusivo interesse
cultural de divulgar a obra de Nenpuku Sato – até agora minimamente traduzida –
entre leitores de língua portuguesa. Se houver algum erro de kanji, a
responsabilidade é minha que os transcrevi diretamente do original. O mesmo se
pode dizer dos erros de tradução.)
____________________
BIBLIOGRAFIA:
1) Nenpuku Kushū, primeiro volume da
coleção de haicais de Nenpuku Sato – contém cerca de 640 haicais – impresso no
Japão, no ano 28 da Era Showa (1953). O título da obra em nossa língua seria
algo como: “Coletânea de Haicais de Nenpuku”.
2)
Dicionário mais consultado para a leitura de kanjis: Jisho.org (japonês-inglês). Vários outros de minha biblioteca.
3)
Para a verificação de kigos brasileiros: Natureza
– berço do haicai: kigologia e antologia, de H. Masuda Goga e Teruko Oda,
Empresa Jornalística Diário Nippak Ltda., São Paulo, 1996.
4)
Para a comparação do poema “nação brasileira / a roça do mundo...” e dados
biográficos de Nenpuku: Trilha Forrada
de Folhas – Nenpuku Sato: Um Mestre de Haikai no Brasil, de Maurício Arruda
Mendonça, Edições Ciência do Acidente, São Paulo, 1999.
5)
Sobre o haicai “salvos do confisco”: O
Haicai no Brasil, de H. Masuda GOGA, Editora Oriento, São Paulo, 1988.
6)
O romaji – a transcrição do japonês
para as letras latinas – é gentiliza de Edson Kenji Iura. De uma vida dedicada
ao haicai, ele é autor de várias obras do gênero, dentre as quais a recente e
obrigatória para todos os amantes de literatura japonesa: Antologia de Haicais Clássicos, Edson Iura (organizador e
tradutor), Telucazu Edições, 2024. Ele é também criador do CAQUI, primeiro
sítio da internet dedicado exclusivamente ao haicai em língua portuguesa.