CORAÇÃO DE HAIJIN



Deparei-me, na primeira conferência de São João Cassiano sobre a virtude monástica[1], com algo que a meu ver ilumina o caminho do haicai. Não posso sentir o mundo fora da dimensão contemplativa e disciplina inerente ao meu estado de vida, pois é só o que tenho em meu cotidiano. Assim, a interpretação que farei de alguns pontos da referida conferência – não sob perspectiva religiosa, mas haicaística – talvez sirva apenas a meu propósito e não faça sentido a outros.

O escrito que me inspira esta reflexão é de um tempo em que sequer havia haicai no mundo, como coisa que se pudesse exprimir em palavras ao modo de Bashô. Este, esperaria ainda mais de mil anos para nascer.[2] Porém, um grande ensinamento serve para os caminhos de todos os tempos. É com tal convicção que ponho em diálogo os padres do deserto e o tesouro inestimável que foi legado ao mundo pelos poetas do Japão, isto que chamamos de haicai, um modo de encarar a vida.     

O santo homem e seu amigo vão ao deserto, para aprender a sabedoria de um venerável ancião que ali vivia. Eles discorrerão sobre o escopo e o fim da vida do monge: todas as artes e disciplinas têm escopo e fim, é com os olhos fixos no fim que um zeloso adepto de cada caminho deve suster sua equanimidade e inclinação. Quando se fala de agricultores, mercadores ou militares, vê-se como cada um suporta as agruras da própria condição, no intuito exclusivo de guardar seu escopo, em vista do fim.

Por escopo entenda-se sempre meta, resolução, meio para se atingir determinada coisa. E fim é o propósito último. Para o monge cristão, sabemos, trata-se do Reino dos Céus. Mas para um haijin, qual será?

O grande ensinamento a ser transmitido pelo abade aos neófitos é sobre escopo, meio. É disso que vou ocupar-me, a partir de agora.    

Em toda arte e disciplina deve-se mirar o escopo – que para o santo padre do deserto é nada menos que resolução de alma ou assídua intenção da mente. Busca-se, portanto, guardar isso com zelo e perseverança, pois quem avança sem um caminho certo recebe a fadiga da viagem, não seu proveito. Para um haicaísta, essas coisas são importantes.

Mas qual vem a ser o escopo que, nesse escrito milenar, servirá também aos propósitos de um haijin?

É a pureza de coração, na qual precisa estar fixo o olhar, dando reta direção ao curso, sem jamais afastar-se do intento ou desviar a mente de sua contemplação.

Deparamo-nos, em Cassiano, com a analogia do arqueiro que aponta para o alvo. O arqueiro sabe que não se alcança o fim, senão por uma reta mira. É necessário atingir o escopo, o alvo colocado diante de si. Se ele nos for subtraído, a mira vazia não tem caminho, arremessa-se inutilmente ao ar, não se poderá falar de perícia ou desvio, acerto ou erro. Será tudo em vão. É assim que muitos se perdem – o olhar é incerto, não têm direção. Falta-lhes a contemplação fixa no puro coração. E, como moderna e banalmente se diz: “a quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve”.[3]

A referida pureza de coração não é fim, mas meio, isto é, escopo. O sábio do deserto dirá que um artesão não engendra as ferramentas de sua arte para tê-las inoperantes, como se a simples posse delas fosse capaz de dar o fruto do trabalho. O que se quer com a sua assistência é sempre alcançar, eficazmente, a perícia e o fim da disciplina de que elas são instrumentos auxiliares.

Em linha reta e certeira, procure o haijin não estorvar a pureza de seu olhar. Convém saber onde fixar a intenção da mente e a que meta conduzir o olhar.

A mente será ainda comparada a um moinho, cuja mó não cessará sua atividade enquanto a faz girar o impulso das águas. Contudo, podemos decidir se ali trituraremos trigo ou joio. Onde estiver o seu tesouro, estará o seu coração (cf. Mt 6, 21).

Deve-se procurar, de modo sincero, a tranquilidade do coração. O que quer que possa turvar a pureza da mente, impede o haicai. Eu entendo isso como o frugal.

Já foi dito que haicai é um momento de escol. É momento de elite e escumalha, é escol e escória. É a comoção mais íntima de estremecimento e também indiferença. Natural e simples como o latido de um cão no meio da noite. É pepita e fuligem, festim e migalha que cai da mesa.

A palavra é bela e frágil como uma flor que murcha. De modo que, no caminho do haicai, não se alcança o fim ao engendrarmos habilmente um punhado delas, sem pôr nisso todo o coração. Não falo de sentimento, mas de atitude. O haicai exige comprometimento de vida. Não importa fazer bons haicais, isso qualquer antiquado recurso de “Inteligência Artificial” ou pessoa sagaz pode simular. Apenas escreva. Sem trair a verdade. Um bom haicai dura mais que os ossos de quem o anotou. Logo, é inútil preocupar-se com tal coisa. Se nos suceder, não estaremos aqui para saber, nem para termos qualquer desgosto com o contrário. Importa muito e acima de tudo viver a vida de um haijin, olhar honestamente para o mundo. Se a lâmpada do olhar fizer bem a sua parte, todo o ser se iluminará (cf. Mt 6, 22 e Lc 11, 34). E é com o coração puro que se alcança a visão (cf. Mt 5, 8).

 

Seishin

清心

 


[1] Há traduções diversas para línguas modernas.

[2] São João Cassiano viveu de 360 a 435, Bashô de 1644 a 1694.

[3] É o resumo popular de um diálogo do livro “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll.


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