RESENHA - O Canto do Inseto
O CANTO DO INSETO
por
Carlos Martins
Acho
que sou um privilegiado neste mundo haicaístico. – “Então quer dizer que no
restante da vida não é?” – diria alguém. Não, só quero enfatizar o quanto o
Insondável foi e é generoso comigo, quando se trata de tudo que cerca o
poeminha de três versos. Quantas surpresas nas páginas de livros que abro, em
pessoas com quem passo a conviver, muitas sem convite, trazidas pelas mãos de
algum deus poético!
Foi
assim com o frade carmelita descalço, Antonio
Fabiano, Seishin, com o
qual, via Grêmio Haicai Ipê, passei a compartilhar ocasiões feitas de amizade e
troca poética.
Tal
encontro possibilitou um rico intercâmbio missivista virtual, de poemas,
opiniões, críticas e, uma muito especial: a revisão dos seus livros. Como este
que tenho em mãos impresso, mas que já foi lido tantas vezes em arquivo,
anotado, sugerido e debatido. Agora, faço a primeira leitura como “leitor” e a
última como “revisor” – o que é algo novo para mim!
sonho
d’uma noite
curtíssima
de verão —
pé
na estrada
Sim,
pegar a estrada das palavras, pois como quero rapidamente mostrar aos amigos e
amigas do Caminho do Haicai a beleza que é este livro – Ah, e não é que esqueci
de falar o nome dele! Trata-se de O
Canto do Inseto (São Paulo: Telucazu Edições, 2024) –,
aproveitei o momento da derradeira revisão, para anotar tópicos para esta
resenha, o que acabou sendo uma brincadeira agradável, no alvorecer de um dia
de verão. E, justamente, o pontapé inicial para isso foi-me dado por um trecho
que então lia:
“Apressei-me a escrever estas linhas, pois em pouco tempo estarei tão
integrado ao lugar e às pessoas, Deus seja louvado, que não haverá diferença
entre nós, ficando difícil descrever, com o encantamento de agora, as coisas que
registro, neste meu diário de viagem e dos primeiros dias.”
E
não é assim mesmo com todos nós? Não é preciso um “olhar estrangeiro” para se
conseguir pincelar todas as singularidades, belezas e detalhes presentes em uma
cena nova que temos diante de nós? Não era assim que revivíamos, em torrente,
os deliciosos momentos das férias de criança, quando, no primeiro dia de aula,
a professora pedia que fizéssemos uma redação sobre eles? E começávamos assim:
“Lá nas férias...” E muitas vezes a relíamos, pois uma semana depois as bordas
das cenas já começavam a desbotar...
férias
de verão —
com
sotaque nordestino
o amor de mãe
Não é difícil corresponder a esse olhar estrangeiro do poeta, com outro, o do leitor, sobre as páginas em que se misturam os aromas de tinta e papel. Como estou na varanda da casa de minha mãe, amante de verdes e flores, suas duas rendas-portuguesas me fazem ser simpático a um poema que leio em voz alta, como que para suas primas paulistas ouvirem:
contínuo
vaivém —
a
samambaia e o vento
conversam
no alpendre
Coincidência?
“Não sei”, como diz Chicó no Auto da
Compadecida, “só sei que foi assim”. Chove desde ontem e anteontem, tendo estiado
brevemente entre os dois. Água que desce e escorre. Nisso, Seishin me diz que
já viu cena parecida:
chove
sem trégua —
no
canto do sabiá
um
quê de aflição
É
noite, antevéspera de Natal, e fecho as páginas do inspirado livrinho, pensando
por um instante nos preparativos da festa que se aproxima. Acho que isso se
deve a ter admirado muito o capítulo “Natal e Ano-Novo”, do qual pinço...
oh
noite feliz...
as
crianças no presépio
brincam
com Jesus
...mas,
inesperada e aleatoriamente, reabro e de novo folheio, estacionando os olhos em
uma pequena passagem: “Esta noite fui ao lago para ver os pirilampos
voejando sobre os capins.” É como se o trecho descrevesse a capa do
livro, onde se vê uma lua, acima à direita, e um capinzal, em toda a margem
debaixo. Só não se vê os vagalumes referidos por Seishin, mas sei que eles
estão lá, como ainda estão dentro de mim, os da minha infância. E ouço o canto
dos insetos, o canto de todos os insetos ouvidos na vida.
Carlos
Martins
O Zen do Haicai
Dezembro de 2024