NO APAGAR DAS LUZES
Para nós, o kigo
tem centralidade e dele deve originar-se o haicai.[1]
Quanto a isso, estamos de acordo!
Mas se colocarmos em debate trinta poetas de
haicai tradicional, haverá dissenso e uns dirão aos outros que há na tertúlia
vinte e nove falsos poetas e tipos de haicai. Isso não é exclusividade
brasileira! É o que vejo também nas discussões de haicai de outros países.
Enfileiro os maiores poetas do Japão. Não imagino
algo mais tenso que Bashô e Shiki convidados para a mesma festa![2]
Damo-nos o apelido poético de “escola de Bashô”, mas devemos quase tudo ao
gênio do caqui, que desconstruiu e até ridicularizava o velho mestre do haicai da
rã.
Será que os sábios da grande assembleia têm lido
os haicais que são feitos no Japão de hoje? Se soubessem japonês, diriam para
os jovens poetas da Terra do Sol Nascente: “kore
wa haiku dewa arimasen”...[3]
O tempo fez-me mais humilde, pelo crisol de meus
próprios fracassos nesta arte. Eu não sei o que é haicai. O que é haicai?
A maneira como alguns inflam seus egos em nossos
círculos, o modo como se deprecia muito facilmente o esforço dos companheiros
em seus malogrados tercetos, a pouca empatia com que se leem (quando se leem)
... tudo isso me faz pensar no sentido do Caminho.
O haicai deve unir as pessoas, não separá-las.
Quando um haicai é sincero, meu coração se enche
de compaixão para lê-lo. Apreciar um haicai, o mais mal escrito da face da
terra, o mais imperfeito e não realizado segundo determinados moldes, é
exercício de humildade, aprendizado, empatia e júbilo.
Deve-se buscar sempre a verdade.
Você não aprecia a vida, se quer vivê-la a partir
de um olhar ininterruptamente crítico. Se você está cheio de sabedoria – do que
já sabe sobre haicai – e não é capaz de pensar de outro modo ou apreciar um
estilo diverso daquele que acredita ser o único, este é o seu limite.
Não existe a idealizada pureza do haicai, nem no
Brasil nem no Japão. O mundo não é puro, a depender do que você entenda por
pureza. E, no entanto, o mundo é puro, se seu coração for puro. Mas nem sequer
isso importa!
Não devíamos nos tornar escravos da lei, matando a
liberdade do espírito. Onde há vida acontece a liberdade do espírito. O
imponderável. Um bom haijin, aquele que atingiu certo nível de amadurecimento,
deve estar acima da lei, não sujeito à lei. Estar acima da lei não é
suprimi-la, mas mover-se para uma mais clara percepção das coisas. Essa
superação é homenagem à própria lei, puro e simples aperfeiçoamento do Caminho.
Os grandes de todos os tempos estão acima da lei, não sujeitos à lei. Nós, os
pequenos, podemos tentar...
Coisas que quero praticar para melhorar como haicaísta:
1.
Reverenciar
os mestres do passado, não imitá-los. “Busque o que eles buscaram”...
2.
Ser
honesto ao escrever um haicai. O mais importante é isso! Um bom haicai é aquele
que toca o coração das pessoas. Se conseguir tocar o coração de uma única
pessoa, sua vida não terá sido em vão!
3.
Ser
simples em tudo que fizer. Para ser sincero no haicai, não hesitar em tornar-se
medíocre e fazer tercetos medíocres...
4.
Ao
escrever um haicai, ter grande consideração por quem vai lê-lo. Seu haicai não
vale nada, se não houver alguém na outra ponta. Dê, a esse alguém, sua total
consideração!
5.
Ler
com grande respeito os haicais dos outros, especialmente daqueles que estão no
começo do aprendizado.
6.
Dar
a sua opinião só quando a pedirem. Ser verdadeiro, sempre, mas jamais criticar
um haicai de modo a ferir ou desanimar o outro.
7.
Aceitar
com gratidão as críticas e correções. Lembre-se que até os insetos listados no
dicionário das estações são seus professores!
Seishin
Diário,
apagar das luzes de 2020.
[1]
Refiro-me ao haicai tradicional, sazonal. Kigo
é a palavra da estação.
[2] Anacronismo
absurdo: Matsuo Bashô (1644-1694) e Masaoka Shiki (1867-1902), o mais velho e o
mais novo dos quatro grandes mestres de haicai do Japão.
[3] “Isto que vocês fazem não é haicai”...