DUAS FOLHAS SOBRE A MESA...
Uma tarde passei pelo
capinzal, perto de onde moro.[1] O vento do outono
batia nele e fazia um gracioso rumor. Era como se eu ouvisse isso pela primeira
vez. Havia também muito barulho de carros. Eu senti o estado de graça daquele
instante, mas não o alcancei. Persegui por dias a imagem do som, voltando muitas
vezes ao lugar. Escrevi o haicai tempos depois, indo lá, em hora de mais
silêncio, à noite, para escutar do vento e das folhas a proporção exata do
ruído e natureza de sua música. Tive saudade do ranger da crina do arco sobre
as cordas do meu violino.
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Muitos dias se
passaram, sem que eu tenha revisitado estes apontamentos. O que escrevi até
agora faz algum sentido?
Há duas folhas secas
sobre a mesa.
Como disse em outro
canto deste diário, tenho buscado aprofundar-me nas obras e nos ensinamentos
dos grandes mestres. Esse sentimento de respeito se manifesta com espírito de
verdadeira gratidão, boa vontade. Acredito que o coração de um haicai, seja
qual for a orientação que se siga ou idioma em que o transcrevamos, trará
nostalgia, eco, lembrança da terra ancestral, dos inventores dessa arte
singular. Inclusive quando é transgredido. As divergências de modos e
aclimatações – no Brasil, o haicai é muito amado e tem sido praticado e
festejado há mais de um século – contribuem para o enriquecimento desse tesouro
da humanidade e literatura universal.
Algumas vezes levo
semanas e até meses para compor um haicai, cujo sentimento advém-me de
experiência da natureza ou cultura. Há
um caminho entre o instante irreversível em que eu capto o haicai, e o ato de
escrevê-lo... quando decido escrevê-lo. Não ajo desse modo para “melhorar” o
haicai. É um processo de ruminação, de assimilação do fenômeno, um exercício em
que internalizo o evento da natureza ou cultura, para ser-lhe fiel na expressão do sentimento. Fica um presente contínuo na memória,
até subscrevê-lo. Talvez por isso tenha levado quase duas décadas para
aproveitar apenas uma dúzia de haicais que, ainda assim, são pífios.
Desde o final dos
anos noventa, quando estudei poética clássica, tive contato com haicais e
exercitei-me nesta forma fixa da poesia japonesa. Escrevi centenas de haicais,
os quais eram muito ruins e foram destruídos posteriormente, num episódio que
eu chamei de “julho em chamas”, salvando-se apenas alguns, que mais tarde foram
reduzidos a um número ainda menor, sendo publicados dentre os doze haicais do
meu quarto livro de poesia. Esta coleção
híbrida – muito antiga, de quando eu ainda não havia feito a opção estética pelo haicai da escola
japonesa que hoje sigo – foi dedicada ao velho amigo Guilherme H. Nakamoto. Foi
também a primeira vez que publiquei haicais, embora já os escrevesse há muito tempo.[2]
Ao vivenciar um haicai, guardo-o na mente. Às vezes anoto algo no celular. As técnicas ou estudos de que raras vezes lanço
mão, servem como preâmbulo disciplinar, até o momento em que começo a me
esvaziar da própria técnica, de todas as ferramentas e acessórios, para vazar a
experiência no que talvez pudesse se chamar "haicai".
Uma vez que esteja
aberta a porta da sensibilidade, a experiência acontece, contempla-se a beleza
do que está aí e apreende-se muito da própria vida. Isto é, recebo da natureza
o que hei de dizer em meu haicai.
O haicai há de nascer
de uma atitude em face da natureza. É esta contemplação conseguida, que os que
escrevem haicais põem nos versos. Um pequeno instante, enquanto baila o
universo e a vida, enquanto bailamos nós e tudo que existe.
diário de haiku,
fragmento
2015