DUAS FOLHAS SOBRE A MESA...

  

Imagem Pixabay


Uma tarde passei pelo capinzal, perto de onde moro.[1] O vento do outono batia nele e fazia um gracioso rumor. Era como se eu ouvisse isso pela primeira vez. Havia também muito barulho de carros. Eu senti o estado de graça daquele instante, mas não o alcancei. Persegui por dias a imagem do som, voltando muitas vezes ao lugar. Escrevi o haicai tempos depois, indo lá, em hora de mais silêncio, à noite, para escutar do vento e das folhas a proporção exata do ruído e natureza de sua música. Tive saudade do ranger da crina do arco sobre as cordas do meu violino.

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Muitos dias se passaram, sem que eu tenha revisitado estes apontamentos. O que escrevi até agora faz algum sentido?  

Há duas folhas secas sobre a mesa.

Como disse em outro canto deste diário, tenho buscado aprofundar-me nas obras e nos ensinamentos dos grandes mestres. Esse sentimento de respeito se manifesta com espírito de verdadeira gratidão, boa vontade. Acredito que o coração de um haicai, seja qual for a orientação que se siga ou idioma em que o transcrevamos, trará nostalgia, eco, lembrança da terra ancestral, dos inventores dessa arte singular. Inclusive quando é transgredido. As divergências de modos e aclimatações – no Brasil, o haicai é muito amado e tem sido praticado e festejado há mais de um século – contribuem para o enriquecimento desse tesouro da humanidade e literatura universal.

Algumas vezes levo semanas e até meses para compor um haicai, cujo sentimento advém-me de experiência da natureza ou cultura. Há um caminho entre o instante irreversível em que eu capto o haicai, e o ato de escrevê-lo... quando decido escrevê-lo. Não ajo desse modo para “melhorar” o haicai. É um processo de ruminação, de assimilação do fenômeno, um exercício em que internalizo o evento da natureza ou cultura, para ser-lhe fiel na expressão do sentimento. Fica um presente contínuo na memória, até subscrevê-lo. Talvez por isso tenha levado quase duas décadas para aproveitar apenas uma dúzia de haicais que, ainda assim, são pífios.

Desde o final dos anos noventa, quando estudei poética clássica, tive contato com haicais e exercitei-me nesta forma fixa da poesia japonesa. Escrevi centenas de haicais, os quais eram muito ruins e foram destruídos posteriormente, num episódio que eu chamei de “julho em chamas”, salvando-se apenas alguns, que mais tarde foram reduzidos a um número ainda menor, sendo publicados dentre os doze haicais do meu quarto livro de poesia.  Esta coleção híbrida – muito antiga, de quando eu ainda não havia feito a opção estética pelo haicai da escola japonesa que hoje sigo – foi dedicada ao velho amigo Guilherme H. Nakamoto. Foi também a primeira vez que publiquei haicais, embora já os escrevesse há muito tempo.[2]

Ao vivenciar um haicai, guardo-o na mente. Às vezes anoto algo no celular. As técnicas ou estudos de que raras vezes lanço mão, servem como preâmbulo disciplinar, até o momento em que começo a me esvaziar da própria técnica, de todas as ferramentas e acessórios, para vazar a experiência no que talvez pudesse se chamar "haicai".

Uma vez que esteja aberta a porta da sensibilidade, a experiência acontece, contempla-se a beleza do que está aí e apreende-se muito da própria vida. Isto é, recebo da natureza o que hei de dizer em meu haicai.

O haicai há de nascer de uma atitude em face da natureza. É esta contemplação conseguida, que os que escrevem haicais põem nos versos. Um pequeno instante, enquanto baila o universo e a vida, enquanto bailamos nós e tudo que existe.

 

diário de haiku, 

fragmento

2015


[1] À margem da Rodovia Raposo Tavares, onde então residia.

[2] NAS PONTAS DOS PÉS, impresso em Natal-RN, no mês de abril de 2015, pela Sarau das Letras.

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