GOLPE DE KATANA
Golpe de katana —
Em duas partes a gota
da chuva estival
Esse terceto é uma firula
medíocre, surreal, que escrevi há algum tempo para uma trilogia de temática
nipônica. Apesar de não ser um bom haicai – tudo de modéstia aí se perde,
pelo que tem de artifício, mostrando-se a rigor pouco digno de respeito! –
gosto dele e o incluí em meu inédito.[1]
Gosto de sua imagética. É o recorte, conceitual, a impressão personalíssima de
um momento de minha vida no caminho do haicai.
Sua primeira redação, que sequer
guardei, foi modificada. Dentre outras coisas, a chuva do último verso não se
sustentava como kigo. Pretendia ser
palavra de estação, mas se eu considerasse os períodos de incidência das chuvas
no Japão, marcando fortemente mais de uma estação, não ficava claro em qual
delas se situava a do haicai. Seria igualmente difícil situá-la nas estações do
Brasil. Então, tempos depois, demarcando a sazonalidade, refiz o último verso.
As chuvas de verão são fortes e
rápidas. Gosto da sensação torrencial do verso. Gosto da imagem densa, molhada desse
haicai. Gosto do som veloz, cortante, da palavra “estival” – empolada e horrível para haicai, capaz de destruir qualquer terceto
em que apareça.
A katana traz para o texto, ainda que implicitamente, a figura
mitificada e de ressonância imaginária do samurai. Eu queria que “ele” fosse
delineado de fora para dentro, a personificar um estado de espírito. Disciplina.
Busquei mesmo conhecer o manuseio da katana,
nas artes marciais, com o intuito de aprender seu golpe e aperfeiçoar o haicai.
No meu haicai, a palavra está grafada com k.[2]
A palavra catana foi incorporada
à língua portuguesa no século XVI. De acordo com a norma culta, escreve-se com c. Hoje, não obstante, é fartamente
escrita com c e com k. Tal palavra aportuguesou-se ao longo
dos séculos e ganhou pronúncia nova e sentido diverso, além do original, que é ser
a arma modelo dos samurais. Quando escolhi grafá-la com k no meu haicai, não mudei obrigatoriamente a pronúncia portuguesa
paroxítona. Mas, alguém familiarizado com a arte da katana ou com o idioma japonês, poderá, até sem perceber, tornar a
palavra oxítona – deslocando seu acento e, consequentemente, rompendo o metro
do verso, que passará, na contagem brasileira, de cinco para seis sílabas
poéticas – estourando o haicai.
Diz-se que a katana é a alma do guerreiro. O verdadeiro golpe de katana na gota significou, para mim, um
momento divisor de águas. Por isso conservei o terceto e faço este registro. Naquele instante – de decisão estética/existencial – se
eu fracassasse, não se abriria para mim o caminho do haicai.
Então, eis que me vejo dentro da chuva. Súbito golpe, velocíssimo, luminoso! Fulminante. Irreversível. É tão real o instante, que chispa em minha face o vento da espada. Parte-se a gota.
Em minha terra se
diz, com expressão mais enfática, que os resolutos dão “nó em pingo d’água”. Anoto,
aqui, o que se escreveu dos antigos: partiram o mar ao meio e o atravessaram a
pé enxuto e, quando não era assim, andavam por cima das águas.
Atitude!
Seishin 清心
Diário, nota
íntima.
2016
[1]
Referia-me ao futuro livro Aragem. Em 2017, ainda inédito, recebeu o Prêmio
Matsuo Bashô, sendo publicado em 2018.
[2]
Anteriormente tida como letra estrangeira, o "k" foi oficializado
como letra do alfabeto português no atual acordo ortográfico de 1990, que
entrou em vigor a partir de 2009.