DIÁRIO (fragmento)


DIÁRIO 

(fragmento)



O que faz um haicai ser haicai e não outra coisa?

 

Resposta possível, mas que apenas tangencia a questão: o sabor.

 

Há muita teoria sobre isso. Você mesmo escreveu linhas que não servem para nada. É como tentar exprimir os gostos de banana, manga, café, brócolis, uva, cachaça, água. Quem provou, sabe. Embora nem todos gostem de tudo ou precisem experimentar todas as coisas. As coisas, porém, são o que são.

 

Se a sua mente estiver vazia, talvez você encontre o haicai. Talvez nunca escreva um, mas saberá seu sabor quando o encontrar. Algo vai tocar seu coração.

 

Para quem faz disso um caminho de vida, o melhor se dá quando já não é importante escrever um bom haicai. Não queira escrever um bom haicai. Apenas escreva. E não tema o julgamento de ninguém. Faça tudo com humildade, sem pretensão.

 

Um haijin não pode ser orgulhoso. Se houver um fio de orgulho em seu coração, não conseguirá compor um haicai digno de consideração.

 

Há aquela sentença do velho poeta do haiku da rã...

 

“As obras do espírito são boas, mas, quando feitas apenas com artifício de palavras, não merecem respeito” (Bashô).

 

A letra em si mesma é inútil. Tornar-se escravo da letra é ruim, porque o espírito é vida e a vida não se deixa aprisionar. É como o vento... Se alguém prendesse o vento, ele deixaria de ser o que é.

 

“O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito” (Jo 3,8).   

 

Muitos não avançam no caminho porque se perdem em disputas, vaidades. É o que se pode chamar de cegueira mental. Um homem vaidoso é apenas alguém iludido em seus próprios devaneios, um carro atolado, um bêbado que crê na elevada ideia que faz de si mesmo, a causar vergonha nos que de fora o observam sobriamente.

 

Seja humilde. Jamais pense que sabe alguma coisa. Aquele que tem a sorte de encontrar um mestre de quem queira aprender e que aceite lhe ensinar, é só a ele que deverá dar satisfação, pelo enorme respeito que devemos aos mestres. No caminho do haiku, você encontrou um mestre. “Porque o discípulo estava pronto, o mestre apareceu”. Mas é preciso lembrar que você não aprendeu nada, até agora.

 

O pai e místico do Carmelo, São João da Cruz (1542-1591), ensina algo que também é possível aplicar ao haicai – porque haicai é nada e está em tudo:

 

“Para chegares a saborear tudo,

Não queiras ter gosto em coisa alguma.

Para chegares a possuir tudo,

Não queiras possuir coisa alguma.

Para chegares a ser tudo,

Não queiras ser coisa alguma.

Para chegares a saber tudo,

Não queiras saber coisa alguma.

Para chegares ao que não gostas,

Hás de ir por onde não gostas.

Para chegares ao que não sabes,

Hás de ir por onde não sabes.

Para vires ao que não possuis,

Hás de ir por onde não possuis.

Para chegares ao que não és,

Hás de ir por onde não és.

....................................

Quando reparas em alguma coisa,

Deixas de arrojar-te ao tudo.

Porque para vir de todo ao tudo,

Hás de negar-te de todo em tudo.

E quando vieres a tudo ter,

Hás de tê-lo sem nada querer.” [1]

 

Esforce-se para honrar os ensinamentos do caminho. E aprenda de todos, porque não há no mundo quem não lhe possa ensinar alguma coisa. Para instruir-se no haicai, você se fez aluno de insetos e plantas, ventos e nuvens, chuvas e luas. Esforce-se mais, dê o melhor de si. Busque, sem desanimar, a simplicidade do haicai e a disposição de espírito que para ele deve ter.

 

 

Seishin 清心

diário de haiku

2015?




[1] Tradução das monjas Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa, Rio de Janeiro.


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