DIÁRIO DE VIAGEM - verão de 2023


(Imagem Ghinzo - Pixabay)


Partimos de Belo Horizonte para Piedade de Caratinga na manhã de 18 de janeiro de 2023. A Kombi estava abarrotada de tralhas da mudança, o que a cada triênio nos faz desejar desfazer-se de mais e mais coisas supérfluas que tristemente acumulamos ao longo dos anos.[1] Felizmente pude trazer meus bonsais, muitos livros de que precisarei, e meus utensílios da Cerimônia do Chá. Deu pena ter de desmanchar a cabana do Ipê, elegante e aprazível, que tinha na cidade grande e onde fiz infinitas vezes treinos de Chadô. Bem diz-nos Santa Teresa: “tudo passa”.[2]

 

sonho d’uma noite

curtíssima de verão —

pé na estrada [3]

 

Quando nos afastamos da capital, deixando para trás a benfazeja lembrança da Serra do Curral, que embeleza e abençoa aquela cidade, tornou-se mais evidente a transformação da natureza. Bela de ponta a ponta, com traços singulares neste lado do Estado, parecia estarmos a ingressar em outro mundo. É notável a diversificação da Mata Atlântica. Relembrei as impressões que tive quando, há cerca de vinte anos, vi pela primeira vez essas paragens e aqui morei. Pensei naquela canção: “oh, Minas Gerais, quem te conhece não esquece jamais”. Terra de tantos poetas, que eu já conhecia mesmo antes de aqui pisar!

Nosso carro não tinha ar-condicionado, suas janelas iam abertas a atenuar o calor. O sol pegava parte de nossos assentos, às vezes só de um lado, em apenas um dos braços, por exemplo, deixando-nos literalmente “meio” queimados.

 

isto é engraçado:

Minas Gerais não tem mar

e estou bronzeado   

 

ventinho gostoso —

faz que não queima e queima

sol de janeiro

 

Cidades que amo e pelas quais passamos de longe: Ouro Preto, Mariana. Não sei se amo outra cidade do mundo, mais que Ouro Preto! As longas horas de cansativa viagem foram compensadas pelas paisagens. Quase nem me dei conta de que estávamos na Estrada Real.

Depois de algumas horas, paramos na graciosa cidade de Catas Altas, para tomar café. Da pracinha, que tem uma Igreja dedicada à Nossa Senhora da Conceição, vê-se agigantada a Serra do Caraça. Embora fizesse calor, a Serra parecia ignorá-lo. Brancas nuvens tocavam o seu cimo. Ali, pensei, o céu encontra-se com a terra. Essa Serra faz jus à notoriedade que tem. Do outro lado dela, há um famoso Santuário[4] que é visitado todas as noites por um lobo-guará. Deixando a cidadezinha, fui louvando-a[5] com os olhos até não poder mais, como se estivesse enfeitiçado. Ao longo do caminho, meu companheiro de viagem[6] foi falando dos lugares santos e lendários desses rincões – alguns até então totalmente desconhecidos para mim.

 

Leste de Minas —

dos casarões antigos

acenam palmeiras

 

No Vale do Aço, indo cada vez mais para o interior, mais as estradas se tornavam ruins. Além de estreitas, com alguns trechos de chão batido, eram evidentes os estragos causados pelas chuvas de verão, havendo barrancos caídos e o perigo real de acidente. Eu nem preciso dizer quão sinuosas são as estradas de Minas...      

Fizemos outra parada, para almoçarmos em um restaurante de beira de caminho. A comida era típica e muito boa. Depois de um café, retomamos a jornada, pois ainda algumas horas nos separavam do destino. Piedade de Caratinga está na mesorregião do Vale do Rio Doce. Nosso convento de São José fica fora da cidade, onde fiz meus primeiros votos muito tempo atrás.

Ao final da tarde, com mais alegria que cansaço, atravessamos os umbrais do sítio.

 

Monte Carmelo —

postos à entrada quais guardas

os velhos salgueiros

 

Os noviços nos receberam alegremente e ofereceram-se para nos ajudar a descarregar a Kombi.

Minha cela, no claustro de cima deste convento, tem uma janela que dá para a montanha. Eu posso ver a mata todas as horas do dia, algo que deveras aprecio.

 

a noite inteira

sobre a montanha e a mata —

raios, trovões

 

Aqui tem muitos canarinhos, tagarelas maritacas, jacus com seus cantos assombrosos e voos desengonçados. Ouve-se sempre pássaros, tantos que nem sei ainda seus nomes, insetos, coaxar de rãs, aves noturnas. Seria muito bom se eu conseguisse escrever haicais de escol!

Quase todos os dias vem um passarinho alaranjado e de asas escuras bicar o vidro da minha janela, tornando desnecessário outro despertador.

Muitas coisas são deliciosamente diferentes da cidade. Aqui comemos comida feita no fogão à lenha e, por causa disso, também nossas roupas que passam pelo varal pegam cheiro de fumaça.

Na primeira semana tivemos chuvas torrenciais, mas depois o sol mostrou-se implacável.

Chegamos a tempo de ver os festejos de São Sebastião, que se estendem por dias.[7] As pessoas deste lugar o veneram com excessivo fervor, pedem a sua proteção para os trabalhos do campo e fazem novenas e festas agradecendo as colheitas.

 

tarde de verão —

o vozerio das beatas

abafado pela chuva

 

ribomba o trovão —

quer entrar também a chuva

pra rezar com os frades?

 

São Sebastião —

de repente cessa a chuva,

calam-se os frades

 

No Rio Preto, na capela desta que é uma de nossas comunidades rurais, presidi a missa em honra desse santo popular. Havia muita gente... Antes da missa teve uma procissão, por estrada de barro e poeira. Eu não sabia que seria tão longa, nem que eram tais as condições do percurso, por isso fui com belos sapatos sociais. Andava como um pato. Um grupo de folia, com instrumentos típicos e roupas rubras, louvava o santo e a Santíssima Virgem. E assim fomos, em penitente marcha, debaixo de um sol gigante, cantando e rezando, até a capelinha do lugar.

 

viva São Sebastião!

animados, os folieiros,

puxam a procissão

 

O sotaque das pessoas daqui é tão bonito! E, quanto mais da roça, mais ininteligível num primeiro instante. Isso é algo que acho interessante!

Embora não fosse novidade para mim, pois já morei neste lugar vinte anos atrás, tudo me pareceu diferente. Vivi um ano neste eremitério. Naquela época eu era um jovem noviço. O nosso mestre era muito austero. Um homem de rigor. Admirável em suas virtudes. Foi aqui que eu aprendi a rachar lenha e outros trabalhos domésticos, que jamais fizera em casa de meus pais.

Apressei-me a escrever estas linhas, pois em pouco tempo estarei tão integrado ao lugar e às pessoas, Deus seja louvado, que não haverá diferença entre nós, ficando difícil descrever, com o encantamento de agora, as coisas que registro, neste meu diário de viagem e dos primeiros dias. 

Esta noite fui ao lago para ver os pirilampos voejando sobre os capins. Na noite de um longínquo ano, voltando para casa, pela enlameada estrada deste sítio, uma nuvem dessas amáveis criaturas cercou-me e fulgurou o caminho. Hoje, pude ver outra vez sua luminescência...

 

os sons da mata —

o baile silencioso

dos vaga-lumes

 

 

Diário

Verão de 2023

清心

 



[1] O autor parte do Convento de Santa Teresa de Belo Horizonte, onde foi prior por três anos, para exercer a mesma função no Convento de São José de Piedade de Caratinga. A cada triênio são feitas mudanças e transferências de uns para outros conventos da circunscrição dos Carmelitas Descalços. 

[2] Santa Teresa de Ávila (1515-1582), baluarte da Ordem do Carmelo Descalço.

[3] No verão, os dias tornam-se cada vez mais longos e as noites curtas. Em janeiro, seu ápice, o calor é intenso e as chuvas são constantes. O kigo "noite curta" expressa uma poética de fugacidade (cf. Natureza, berço do haicai: kigologia e antologia. H. Masuda Goga e Teruko Oda. Empresa Jornalística Diário Nippak Ltda. São Paulo: 1996).

[4] Santuário do Caraça.

[5] Louvando a Serra do Caraça...

[6] Frei Ronan Siqueira de Almeida, mineiro.

[7] O dia da festa de São Sebastião, no calendário católico, é vinte de janeiro.



Catas Altas e parte da Serra do Caraça

Serra do Caraça

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