HAICAI, UM MODO DE VIDA

(Imagem Frank Winkler - Pixabay)

HAICAI, UM MODO DE VIDA

Seishin (清心) *

 

Emoção e simplicidade

Aprendi de minha mestra, ao recordar seu mestre e evocar os mais antigos de nossa tradição, que haicai é emoção. Este é um princípio vital do caminho, moção que deve ter suas raízes aprofundadas na verdade emanada de uma experiência concreta. Em outras palavras, o haicai é bom quando nasce do coração e toca os corações. Ilumina-se com isso o que nos foi transmitido, em diversos tempos e de muitas maneiras: haicai é o aqui e o agora. Alcançar tal percepção, sem ser artificial ou apelativo, é ser simples.

Antes de mais nada, e independentemente de estarmos no oriente ou no ocidente, quando praticamos haicai devemos entender que o que nos inspira ou toca é a natureza local, o ambiente natural que nos envolve e influencia, além de nossa própria cosmovisão; imersos em cultura e idioma específicos, vivendo a época não dos velhos mestres, em que o tempo escoava lento nos pacatos vilarejos, mas a de agora, um caos ordenado onde tempo e espaço têm diferente impacto sobre a percepção humana; enfim, a partir de uma série de novos conceitos éticos e estéticos e da nossa inerente capacidade de assimilação desta arte.

Apesar de, e graças às influências a que estamos sujeitos, o haicai – aquele que buscamos – se torna pleno quando apreendemos o real significado de simplicidade, no que toca a nós mesmos e em relação às demais coisas. Ser assim, e desse modo observar os fatos, é comunhão, harmonia.

Dessa forma, faz-se necessário pensar que haicai ultrapassa o ato de meramente escrevê-lo, e, portanto, buscar tornar-se mais simples, isto é, sujar as mãos com as coisas, misturar-se com elas, ficar menor do que as palavras. Porque haicai é um feixe de simplicidade. O haicai é um poço em que a água baldeada finalmente se assentou. Esta baliza é expressão de vida, sinceridade, a transparência própria da lucidez. É disto que emana a emoção, da qual falamos. E, a meu ver, não levar em conta essas coisas é fazer haicai artificial, sem profundidade e pouco convincente.

Fica, então, evidente que emoção em haicai não é ênfase, afetação, jorro indiscriminado de sentimentos. Ela é sem dúvida um campo fértil, mas exige compreensão e discernimento, maturidade. Nenhuma forma de excesso contribui para esse tipo especial de composição. E se sugerimos contenção, esta não é restrição artística; trata-se de disciplina, sobriedade, domínio da técnica aliado imprescindivelmente à atitude. Dizer do bambu o que é do bambu...

Muitas vezes um haicai está tecnicamente perfeito, mas – talvez por isso mesmo – não toca ninguém. Será como uma letra fria ou um corpo sem alma. Semelhante a um boneco de cera, serve para vitrines, enfeita. Mas o haicai que buscamos é de outro naipe.

 

Fagulha e incêndio

O bom haicai parece ser aquele que se assemelha a uma faísca: sua aparente insignificância não deve ser subestimada, pois é capaz de gerar grande incêndio. Algo assim possui tanta eficácia, que uma simples leitura ou audição será suficiente para deixar impressões fundas e até marcas indeléveis. É particularmente bom quando não exige explicação e dispensa qualquer análise.[1] Como um soco no estômago, faz-se sentir muito além de qualquer razoabilidade. É assim que sinto, em nossos encontros, quando um bom haicai de vez em quando aparece.

Tenho lido haicais bem elaborados, que suscitam algum interesse de apreciação intelectual-racional[2], e nada mais que isso. Estes não são como aqueles – eivados de vivência – que causam estremecimento, ressonância ou comoção íntima, um fenômeno de natureza estética diferente; alguns, inclusive, podem ser considerados pouco artísticos, mas são prenhes de inominável beleza e poder de comunicação.

Parece claro que os melhores haicais entram em nosso espírito como uma paisagem se revela, delicadamente, ao espelho dos olhos fazendo, em seguida, festa na alma. Eles às vezes podem gerar também desconforto, mas a verdade que trazem em seu bojo é tal que não a podemos ignorar.

Alguns dos meus haicais considerados bons – não aqueles imaginados ou feitos por exercício de técnica e disciplina instrumental – são como fotografias vívidas, carregados de sentimento e profundo significado pessoal. São como chamas acesas que queimam, ao mais leve toque. Iluminam em presente contínuo. Sou capaz de, ao relê-los, viver outra vez emoções e dizer, em detalhes, as circunstâncias em que nasceram ou que os motivaram. Estes também parecem ser os que mais tocam as outras pessoas, quando os leem, ainda que sob suas próprias perspectivas, experiências e entendimento.

 

Aprendiz de moscas e grilos

No que toca à educação ou reeducação dos sentidos, para o caminho do haicai é imprescindível muita disciplina na observação e vivência da natureza. As moscas podem ser excelentes professoras de verão. Os grilos, bem como as cores das folhas, dizem todos os anos coisas de outono que nunca acabamos de aprender. O frio que gela a alma foi meu mais rigoroso mestre de inverno. Sabiás dão aulas gratuitas, desde as primeiras horas do dia, quando chega a primavera. Portanto, são muitas as oportunidades que temos de aprendizado em relação à natureza – mesmo dentro de uma cidade poluída e barulhenta – e aos eventos humanos próprios de cada estação. O haijin é antes de tudo um espírito atento às mudanças que ocorrem ao seu redor. Quanto mais disciplinado o olhar, mais pleno será o haicai.

O haicaísta que busca de verdade o aperfeiçoamento da sua arte, vê em tudo uma possibilidade de aprendizado. A busca sincera do coração, com perseverança e a sorver as pequenas alegrias que decorrem desta experiência, já é o caminho. Estar no caminho é o mais importante, como sabemos, não a realização em si. Convém, por isso, abraçar o que chamamos de sutileza do haicai. Este esmeril afia – produz – singularíssima sensibilidade. Alcançar isso, e ser capaz de transmitir com fluidez a verdade do haicai, é expressão dinâmica de vida, o sublime e o banal nela possíveis.[3]

 

Bashô e o nosso haicai

Quando dizemos que seguimos a escola de Bashô, não queremos sugerir que fazemos o haicai de Bashô ou à sua moda. Tal coisa seria um anacronismo patético! Nem mesmo pretendemos imitar, no que concerne ao haicai brasileiro de viés tradicionalista, determinados padrões estéticos do haicai do Japão feudal. Esta já é para nós uma questão ultrapassada há pelo menos três gerações, histórica e magistralmente resolvida por mestres como Nenpuku Sato e Masuda Goga. Queremos, sim, dizer que reconhecemos o caráter de a que foi elevada esta arte, pelo referido mestre, e que nos esforçamos para viver uma vida de haicai, mantendo-nos, na medida do possível, fiéis a determinados princípios.

O haicai brasileiro não é um arremedo do haicai japonês, ainda que a tradição que seguimos tenha recebido suas bases diretamente dos mestres japoneses, do que somos ciosos e muito agradecidos. Ele é expressão de um fenômeno universal – se colocássemos em dúvida a possibilidade de compor haicai em qualquer língua ou em qualquer parte do mundo, reduziríamos miseravelmente sua grandeza! – com as singularidades e riquezas, o sabor e as cores próprias de nossa cultura e aspectos de cada região.[4]  

 

Agremiações

Durante muito tempo fiz um caminho solitário nesta arte – apenas discípulo e mestra – sem poder frequentar os grupos de haijins, onde se dá parte imprescindível do aprendizado segundo a tradição. Isso, pelas minhas ocupações e, principalmente, porque morava longe das agremiações, embora, como disse, recebesse orientação magistral e vivesse há muito submerso em haicai. Foi na posterior assiduidade a encontros do gênero, que descobri algumas das mais encantadoras faces do haicai tradicional: a fraterna convivência de pessoas às vezes bastante diferentes entre si, a amizade que são capazes de construir ao longo do caminho, o modo como se dedicam a essa causa e a transferem realmente para a vida pessoal e profissional e, surpreendentemente, uma multifacetada compreensão do que é o haicai. Na reunião de haicai, todos nos tornamos iguais. Crescemos, pelo fraterno julgamento dos outros e correção dos mestres; aprendemos que ninguém conquista diploma de haijin; descobrimos que o sucesso e o fracasso de cada composição são a mesma coisa, conforme o verdadeiro espírito do haicai. A superação de dificuldades que encontramos num círculo de haicaístas é algo realmente gratificante! Alguns praticantes jamais publicarão livros de haicai, seja porque não têm essa meta de vida, seja porque creem que nunca escreverão coisas dignas de um livro. Porém, a alegria humilde de muitos deles, o esforço em aprender a compor haicai e melhorar seus versos, nos dão conta do que isso significa para cada indivíduo. Vemos aí a dimensão de seus corações, porque estas pessoas, dada a perseverança que têm, são os verdadeiros e talvez melhores haijins. 

Muitos dos nossos haicais – se considerados apenas sob a perspectiva de pura arte, não ou elemento de experiência e realização pessoal, nem lúdico e de integração fraterna nos haikukai[5] – podem flertar com a mediocridade, pouca originalidade e permanência na zona de conforto do ato de “fazer” haicai. Mesmo um haicaísta brilhante, de qualquer das vertentes, pode ir do sublime ao burlesco na execução de um haicai, tal é a complexidade deste tipo de poema. Apenas os incautos consideram-no “fácil”. Esta complexidade decorre, talvez, de sua profunda simplicidade. As coisas mais simples são também as mais difíceis, para muitos de nós.

 

Haicai universal

O melhor haicai é o mais universal, ensinava o mestre Goga. O que implica dizer que um haicai pode ser muito bom, mas restrito a um grupo menor de interlocutores, em seu universo de compreensão. É o caso de um haicai que expressa, sim, beleza e verdade, mas a partir de singularidades ao alcance de apenas determinado grupo: quando, por exemplo, está fundado em aspectos linguísticos ou culturais regionais, inacessíveis a outros grupos, a não ser que haja contextualização ou suporte experto de notas explicativas. O melhor haicai, neste caso, pode ser aquele que mesmo não se destituindo dos aspectos culturais regionais alcança o entendimento mais universal.[6]

Certa polivalência, seu amplo alcance, parece ser o que buscamos em um haicai de pulsação, vital. Ela não se alcança muito facilmente, mas é o que faz de alguém, mais que um escrevedor de tercetos, um sincero haijin, a pessoa que vive, com radical simplicidade e entrega de si, o caminho do haicai. A atitude é o que conta, quanto do espírito do haicai está no que somos. Haicai, como eu o entendo hoje, não é apenas uma opção estética, é um modo de vida, muito além de versos, uma convicção profunda que, curiosamente, não reivindica nada para si, nem como arte, nem como crença, mas que está em tudo o que faço e em tudo que sou.

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* SEISHIN é o nome haicaístico de Antonio Fabiano, monge carmelita descalço. Publicou este ano “Aragem” (haicai), em português pela Editora Mondrongo, e em japonês pela Associação Cultural e Literária Nikkei Bungaku do Brasil (trad. Michiyo Nakata).

(Artigo publicado em: Brasil Nikkei Bungaku nº 60. São Paulo: Associação Cultural e Literária Nikkei Bungaku do Brasil, novembro de 2018, pp. 56-60.)



[1] É evidente que não me refiro a notas de contextualização, abordagens teóricas, leituras acadêmicas, discussões de haicai em grupos de estudo etc. Falo da simples apreciação do haicai no cotidiano, por pessoas comuns e haijins, os que dedicam sua vida ao haicai.

[2] O que de modo algum é negativo. Mas o haicai da escola de Bashô transcende esse aspecto e o evita.  

[3] Inclino-me a inferir que reunir em uma só pessoa suficiente talento haicaístico, a já referida emoção do haicai, seu caráter racional, o inerente arcabouço de arte clássica que essa tradição comporta e emana, sensibilidade, capacidade artística pessoal de expressão, originalidade, força de comunicação eficaz e, acima de tudo, simplicidade, é fenômeno raro. Tanto mais, quando nos damos conta de que o mais leve movimento de semelhantes presunções, no caminho do haicai, é a prova cabal de nunca o ter alcançado verdadeiramente.

[4] No Brasil, a depender da região, estações se manifestam e são percebidas às vezes de modos muito diferentes.

[5] Reuniões de poetas de haicai, segundo os moldes da escola tradicionalista. 

[6] É evidente que mesmo o haicai mais universal poderá sofrer leitura limitada, quando falta ao interlocutor elementos básicos de compreensão desta arte. Uma pessoa de notável saber, mas não iniciada no caminho do haicai, pode eventualmente ignorar a grandeza do melhor dos poemas de Bashô ou de qualquer dos mestres.

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