AS LUAS DESTA NOITE
AS LUAS DESTA NOITE
E
de repente,
a
lua iluminando
a
roda de amigos
Nenpuku Sato[1]
Há anos, no Templo Busshinji de São Paulo, haijins[2]
se encontram, por ocasião da primeira lua cheia do outono, para contemplá-la e
compor haicais. Especialmente a esta lua chamamos de lua-desta-noite. Fazer
haicais à lua de outono é um costume antigo, cuja origem remonta à própria
terra de nascimento do “pequeno samurai” que é esta forma fixa de poema, haiku, a menor de todo o mundo, uma das
mais amadas e praticadas até hoje. Quem não se lembra das viagens de Bashô, aos
confins do velho Japão, onde aparece muitas vezes o intuito de simplesmente
contemplar a lua? O que chamamos de lua-desta-noite é um kigo[3]
de outono, e esta lua não se confunde com as luas de outras noites ou de outras
estações; isto é, traz em si um significado intransferível, próprio da lua cheia
de outono do hemisfério em que é contemplada. Portanto, a lua admirada nesta noite
possui um sabor, um sentimento inequívoco de celebração, com tudo o que implica
a experiência: sua aparição inaugural no céu de outono, a data no calendário, a
comoção humana em torno disso, a tradição haicaística, o ato de compor poemas
sob sua inspiração etc. Os haijins chamam esta atividade de “contemplação da
lua”. E, na ocasião, o termo clássico a que nos referimos, canônico, expressa-se
em variáveis – pode ser dito simplesmente “lua” – mas é o mesmo kigo, inconfundível,
com a carga própria de emoções e sentimentos que suscita.
lua
desta noite —
caminhos
da Serra Branca
onde
a avó foi moça
branquidão
da serra —
em
meio a vento e silêncio
a
lua... a lua...
na cela do frade [4]
um
sorrateiro clarão —
lua
desta noite
bêbado
de saquê —
se
agiganta a cada gole
a
primeira lua
no
céu nublado
da
aldeia adormecida —
lua
desta noite
a
lua esperada —
resplendor
silencioso
sobre
o Potengi [5]
Embora os meus poemas estejam mais eivados de solidão, pelas
circunstâncias em que foram escritos, os haicais dos que participam da
contemplação da lua em grupo tendem a exprimir altíssimo teor de
confraternização. Neles, a ênfase às vezes é dada sobre o evento humano,
vivencial, mais do que sobre a admiração do fenômeno atmosférico em si, o
plenilúnio, muito embora a alma de cada haicai que nasce da roda de haijins,
nesta noite, seja a lua.
O ato de contemplar a lua é pura gratuidade e, mais que isso,
total gratidão. Imbuídos deste espírito nascem os haicais desta noite, quando
se pratica a composição espontânea de modo amistoso e fraterno, com atitude de despojamento
e simplicidade, sem qualquer ranço de disputa, pouco importando se os poemas
que cada um apresentará ao final são obras de haijins veteranos ou versos
truncados de aprendizes. O mais importante é a sinceridade do coração de quem
participa da contemplação da lua. Sem tal atitude, não se pode perceber a
cultura milenar que desliza por trás de nossos gestos.
Fora isso, dizer apenas “lua cheia” ou “lua” em haicai, sem
mais, é kigo de outono, não necessariamente da primeira lua cheia do outono,
mas plenilúnio outonal. Isso é consenso entre os haijins, desde a antiguidade. Quando
o poema se refere às luas de outras épocas, a estação do ano é naturalmente
especificada por seus respectivos kigos, não deixando margem para dúvida.
Alguns haicais de lua de outono que não são, precisamente, da
primeira lua:
janelas
de vidro —
a
prata do céu de outono
na
prata da casa
o
rosto desfeito
na
água morna do açude —
já
tão alta a lua
lua
de outono —
o
tremor de alguns vultos
na
água do rio
Agora falemos da lua de Páscoa. Este é também o nome que se
dá à primeira lua do outono do hemisfério sul, o outono austral. Então, o
referido kigo é o mesmo de lua-desta-noite? Necessariamente, não. Pois ainda
que haja a coincidência de ser, no hemisfério sul, a mesma lua e a mesma noite,
podem, a meu ver, ser kigos diferentes.
Na noite de Páscoa acontece a mais bela, a mais solene e
maior de todas as festas cristãs.[6]
Esta noite brilha mais que o dia, no coração dos fiéis, porque nela se celebra
a Ressurreição de Jesus. A claridade do dia une-se à claridade da noite, num
dia sem ocaso, poeticamente falando. Um antigo poema da liturgia cristã diz
que, nesta noite, a luz do círio pascal[7]
mistura-se à luz das estrelas, e o céu e a terra tornam-se uma só coisa,
novamente.
É, portanto, o calendário lunar que determina esta data,
móvel, todos os anos. Acontece SEMPRE na primeira lua cheia do outono, para o
hemisfério sul,[8]
deslocando-se a comemoração para o sábado/domingo mais próximo, visto que o
domingo é o Dia do Senhor, para os cristãos. Esta primeira lua, que determina o
calendário da maior festa cristã, é chamada lua de Páscoa e, também, lua
eclesiástica. No hemisfério norte, a celebração da Ressurreição de Jesus
coincide com a chegada da primavera, quando terminam as agruras do inverno e a
natureza se veste de flores e há diversas festas. Nesse hemisfério de sua
origem, a comemoração agregou, pacificamente, não apenas costumes do próprio cristianismo
e do judaísmo, mas também elementos pagãos. Para nós é a chegada do outono, que
traz as festas da colheita e, por analogia, exprime maturidade, plenitude dos
tempos em perspectiva teológica. Assim, já se intui que a lua de Páscoa, em
haicai, agrega sentimento e experiência diversa de lua-desta-noite.
Alguns haicais de lua de Páscoa:
O fogo sagrado [9]
diante do tabernáculo —
A lua de Páscoa
Sobre a ermida
o fulgor do luar —
Noite de Páscoa
Alvor sem mácula
sobre os muros do
mosteiro —
Lua de Páscoa
No véu da monja
a imaculada luz
da lua pascal
O som dos sinos [10]
da festa de
Aleluia —
A lua plena
Ah, lua de
Páscoa!
Uma hóstia
elevada
para adoração [11]
Esta lua dos haicais acima expostos é, impreterivelmente, a
do Sábado de Aleluia. Não é a lua cheia de nenhum outro dia, senão a do Domingo
de Páscoa.[12] Esta
é a lua que se contempla naquela noite, antes ou depois da Vigília Pascal,
quando as pessoas vão ao templo para a Festa da Páscoa. Antigamente, ela guiava,
com sua claridade, o caminho dos campesinos que iam às festas religiosas e
profanas.[13] Os
antigos chamavam estas noites claras de “noites de lua”, favoráveis a eventos
noturnos quando, é bom lembrar, não havia luz elétrica.[14]
Pode-se, assim, inferir que o sabor, o sentimento em face da lua
de Páscoa é diferente do que suscita lua-desta-noite.[15]
Em lua de Páscoa a sensação é de algum modo de religiosidade – não
necessariamente sensação religiosa – ou de aspecto cultural muito forte, para
um ocidental, em se tratando das festas populares desta noite. Também há a
ideia de efusiva alegria, cuja origem está na Ressurreição do Senhor, como já se
disse, na festa de Aleluia, no rompimento do silêncio, nas comidas especiais deste
tempo, depois de quarenta dias de penitências e jejuns. Isso tudo é diferente da
lua-desta-noite que é um tanto introspectiva e às vezes melancólica, muito mais
contemplativa, silenciosa, de beleza exuberante, sim, mas a suscitar emoções
mais contidas. A lua-desta-noite chama a atenção para si, ocupa a centralidade
das expectativas, como protagonista de um evento poético singular; ela possui imensurável
peso na tradição haicaística. Em termos haicaísticos, o peso da tradição desta
lua, a lua de Bashô, é mais abrangente. A lua de Páscoa, todavia, é mais
modesta e funcional, ela aponta para o acontecimento que susteve a civilização
ocidental por séculos, em sentido religioso ou cultural, místico ou meramente
histórico.
Seishin 清心
(Publicado em: Brasil
Nikkei Bungaku nº 59. São Paulo: Associação Cultural e Literária Nikkei
Bungaku do Brasil, julho de 2018, pp. 15-18.)
[1]
Tradução de Maurício Arruda Mendonça em Trilha
Forrada de Folhas – Nenpuku Sato: Um Mestre de Haikai no Brasil. São Paulo:
Edições Ciência do Acidente, 1999, p. 22-23.
[2]
Haijin: pessoa que escreve haicais, pessoa que dedica sua vida ao caminho do
haicai.
[3]
Kigo: termo que caracteriza a estação de cada haicai.
[4]
Cela é o nome que se dá ao quarto do frade ou monge.
[5]
Potengi é o mais famoso rio da minha terra, é o rio que deu origem ao nome do
Estado do Rio Grande do Norte. Ele nasce pequenininho em Cerro Corá, a cidade
de meus pais, mas torna-se grande em Natal, a capital do Estado.
[6]
Popularmente conhecida como noite de Sábado de Aleluia.
[7]
Enorme vela acesa nesta noite, nas igrejas católicas, dentro do rito da luz.
[8]
É, então, a primeira lua cheia da primavera no hemisfério norte, equinócio
vernal.
[9]
Junto de todos os tabernáculos ou sacrários, nos templos católicos, arde
obrigatória e continuamente um fogo, vela ou lâmpada. Este fogo é apagado na
quinta-feira da Semana Santa, quando o altar é desnudado e a Igreja mergulha na
Paixão de Cristo, ficando sem flores e com as imagens dos santos cobertas. Na
noite do Sábado Santo, que é o Sábado de Aleluia, celebra-se a maior e mais
solene de todas as missas do ano. É no início dessa celebração – que começa fora
do templo totalmente escuro e à luz da lua cheia, a lua de Páscoa – que tem
lugar o rito de “bênção do fogo novo”, o fogo sagrado referido no poema. Com
esse fogo, o sacerdote acenderá o círio pascal, num ritual bem preciso e cheio
de significados, e o fogo do círio é passado às velas dos fiéis que em
procissão entram no templo, iluminando-o. Neste dia de grande festa, em que se
proclama a Páscoa solenemente, o fogo santo (isso era mais comum antigamente,
mas se faz ainda hoje nos lugares onde há vela junto ao sacrário, em vez de
lâmpada elétrica) volta a queimar diante do tabernáculo, e permanecerá
cuidadosamente resguardado, sem jamais se apagar, até à Semana Santa do próximo
ano. Como sacerdote, conheço bem o rito anual de bênção do fogo, desta celebração
da luz.
[10]
Durante toda a Quaresma, que é o tempo litúrgico que precede a Páscoa, os sinos
das igrejas em muitos lugares sequer tocam. Tudo se torna sóbrio na liturgia
cristã, não se diz nem se canta “aleluia”, não se enfeita o templo etc. Na
noite de Páscoa, os sinos voltam a tocar com cantos de “aleluia” e acaba-se o
tempo das penitências.
[11]
Hóstia é o pão consagrado, que é o próprio Cristo adorado e recebido pelos
fiéis. Neste caso, a lua cheia lembra a hóstia elevada pelas mãos do padre, na
missa.
[12]
A partir do entardecer dos sábados, é Domingo no calendário litúrgico cristão,
diferentemente do civil.
[13]
Embora muito do que eu disse até agora seja de matiz religioso, a noite de
Páscoa é marcada por diversos eventos populares não religiosos.
[14]
Ouvi de meus avós muitas histórias destas noites enluaradas, algumas de seres
encantados, outras mais humanas. Por exemplo, as moças que se casavam
contrariando a vontade dos pais, numa época em que os casamentos eram
arranjados pelos chefes das famílias, fugiam com seus amados em “noites de
lua”. Contudo, dentro do rigoroso sistema moral daqueles tempos, até isso era
feito com a mediação de uma pessoa de honra que, posteriormente, tentaria
reconciliar as partes conflitantes.
[15]
A utilização de hífen em lua-desta-noite é meramente instrumental, para
enfatizar no texto em prosa a ideia do kigo que se exprime no conjunto das
palavras.