AS LUAS DESTA NOITE

(Imagem Klaus Stebani  - Pixabay)


AS LUAS DESTA NOITE

 

E de repente,

a lua iluminando

a roda de amigos

Nenpuku Sato[1]

 

Há anos, no Templo Busshinji de São Paulo, haijins[2] se encontram, por ocasião da primeira lua cheia do outono, para contemplá-la e compor haicais. Especialmente a esta lua chamamos de lua-desta-noite. Fazer haicais à lua de outono é um costume antigo, cuja origem remonta à própria terra de nascimento do “pequeno samurai” que é esta forma fixa de poema, haiku, a menor de todo o mundo, uma das mais amadas e praticadas até hoje. Quem não se lembra das viagens de Bashô, aos confins do velho Japão, onde aparece muitas vezes o intuito de simplesmente contemplar a lua? O que chamamos de lua-desta-noite é um kigo[3] de outono, e esta lua não se confunde com as luas de outras noites ou de outras estações; isto é, traz em si um significado intransferível, próprio da lua cheia de outono do hemisfério em que é contemplada. Portanto, a lua admirada nesta noite possui um sabor, um sentimento inequívoco de celebração, com tudo o que implica a experiência: sua aparição inaugural no céu de outono, a data no calendário, a comoção humana em torno disso, a tradição haicaística, o ato de compor poemas sob sua inspiração etc. Os haijins chamam esta atividade de “contemplação da lua”. E, na ocasião, o termo clássico a que nos referimos, canônico, expressa-se em variáveis – pode ser dito simplesmente “lua” – mas é o mesmo kigo, inconfundível, com a carga própria de emoções e sentimentos que suscita.

 

lua desta noite —

caminhos da Serra Branca

onde a avó foi moça

 

branquidão da serra —

em meio a vento e silêncio

a lua... a lua...

 

na cela do frade [4]

um sorrateiro clarão —

lua desta noite

 

bêbado de saquê —

se agiganta a cada gole

a primeira lua

 

no céu nublado

da aldeia adormecida —

lua desta noite

 

a lua esperada —

resplendor silencioso

sobre o Potengi [5]

 

Embora os meus poemas estejam mais eivados de solidão, pelas circunstâncias em que foram escritos, os haicais dos que participam da contemplação da lua em grupo tendem a exprimir altíssimo teor de confraternização. Neles, a ênfase às vezes é dada sobre o evento humano, vivencial, mais do que sobre a admiração do fenômeno atmosférico em si, o plenilúnio, muito embora a alma de cada haicai que nasce da roda de haijins, nesta noite, seja a lua.

O ato de contemplar a lua é pura gratuidade e, mais que isso, total gratidão. Imbuídos deste espírito nascem os haicais desta noite, quando se pratica a composição espontânea de modo amistoso e fraterno, com atitude de despojamento e simplicidade, sem qualquer ranço de disputa, pouco importando se os poemas que cada um apresentará ao final são obras de haijins veteranos ou versos truncados de aprendizes. O mais importante é a sinceridade do coração de quem participa da contemplação da lua. Sem tal atitude, não se pode perceber a cultura milenar que desliza por trás de nossos gestos.

Fora isso, dizer apenas “lua cheia” ou “lua” em haicai, sem mais, é kigo de outono, não necessariamente da primeira lua cheia do outono, mas plenilúnio outonal. Isso é consenso entre os haijins, desde a antiguidade. Quando o poema se refere às luas de outras épocas, a estação do ano é naturalmente especificada por seus respectivos kigos, não deixando margem para dúvida.

Alguns haicais de lua de outono que não são, precisamente, da primeira lua:

 

janelas de vidro —

a prata do céu de outono

na prata da casa

 

o rosto desfeito

na água morna do açude —

já tão alta a lua   

 

lua de outono —

o tremor de alguns vultos 

na água do rio

 

Agora falemos da lua de Páscoa. Este é também o nome que se dá à primeira lua do outono do hemisfério sul, o outono austral. Então, o referido kigo é o mesmo de lua-desta-noite? Necessariamente, não. Pois ainda que haja a coincidência de ser, no hemisfério sul, a mesma lua e a mesma noite, podem, a meu ver, ser kigos diferentes.

Na noite de Páscoa acontece a mais bela, a mais solene e maior de todas as festas cristãs.[6] Esta noite brilha mais que o dia, no coração dos fiéis, porque nela se celebra a Ressurreição de Jesus. A claridade do dia une-se à claridade da noite, num dia sem ocaso, poeticamente falando. Um antigo poema da liturgia cristã diz que, nesta noite, a luz do círio pascal[7] mistura-se à luz das estrelas, e o céu e a terra tornam-se uma só coisa, novamente.

É, portanto, o calendário lunar que determina esta data, móvel, todos os anos. Acontece SEMPRE na primeira lua cheia do outono, para o hemisfério sul,[8] deslocando-se a comemoração para o sábado/domingo mais próximo, visto que o domingo é o Dia do Senhor, para os cristãos. Esta primeira lua, que determina o calendário da maior festa cristã, é chamada lua de Páscoa e, também, lua eclesiástica. No hemisfério norte, a celebração da Ressurreição de Jesus coincide com a chegada da primavera, quando terminam as agruras do inverno e a natureza se veste de flores e há diversas festas. Nesse hemisfério de sua origem, a comemoração agregou, pacificamente, não apenas costumes do próprio cristianismo e do judaísmo, mas também elementos pagãos. Para nós é a chegada do outono, que traz as festas da colheita e, por analogia, exprime maturidade, plenitude dos tempos em perspectiva teológica. Assim, já se intui que a lua de Páscoa, em haicai, agrega sentimento e experiência diversa de lua-desta-noite.

Alguns haicais de lua de Páscoa:

 

O fogo sagrado [9]

diante do tabernáculo —

A lua de Páscoa

  

Sobre a ermida

o fulgor do luar —

Noite de Páscoa

 

Alvor sem mácula

sobre os muros do mosteiro —

Lua de Páscoa

 

No véu da monja

a imaculada luz

da lua pascal

 

O som dos sinos [10]

da festa de Aleluia —

A lua plena

 

Ah, lua de Páscoa!

Uma hóstia elevada

para adoração [11]

 

Esta lua dos haicais acima expostos é, impreterivelmente, a do Sábado de Aleluia. Não é a lua cheia de nenhum outro dia, senão a do Domingo de Páscoa.[12] Esta é a lua que se contempla naquela noite, antes ou depois da Vigília Pascal, quando as pessoas vão ao templo para a Festa da Páscoa. Antigamente, ela guiava, com sua claridade, o caminho dos campesinos que iam às festas religiosas e profanas.[13] Os antigos chamavam estas noites claras de “noites de lua”, favoráveis a eventos noturnos quando, é bom lembrar, não havia luz elétrica.[14]

Pode-se, assim, inferir que o sabor, o sentimento em face da lua de Páscoa é diferente do que suscita lua-desta-noite.[15] Em lua de Páscoa a sensação é de algum modo de religiosidade – não necessariamente sensação religiosa – ou de aspecto cultural muito forte, para um ocidental, em se tratando das festas populares desta noite. Também há a ideia de efusiva alegria, cuja origem está na Ressurreição do Senhor, como já se disse, na festa de Aleluia, no rompimento do silêncio, nas comidas especiais deste tempo, depois de quarenta dias de penitências e jejuns. Isso tudo é diferente da lua-desta-noite que é um tanto introspectiva e às vezes melancólica, muito mais contemplativa, silenciosa, de beleza exuberante, sim, mas a suscitar emoções mais contidas. A lua-desta-noite chama a atenção para si, ocupa a centralidade das expectativas, como protagonista de um evento poético singular; ela possui imensurável peso na tradição haicaística. Em termos haicaísticos, o peso da tradição desta lua, a lua de Bashô, é mais abrangente. A lua de Páscoa, todavia, é mais modesta e funcional, ela aponta para o acontecimento que susteve a civilização ocidental por séculos, em sentido religioso ou cultural, místico ou meramente histórico.

 

Seishin 清心

 seridoano@gmail.com

 

(Publicado em: Brasil Nikkei Bungaku nº 59. São Paulo: Associação Cultural e Literária Nikkei Bungaku do Brasil, julho de 2018, pp. 15-18.)



[1] Tradução de Maurício Arruda Mendonça em Trilha Forrada de Folhas – Nenpuku Sato: Um Mestre de Haikai no Brasil. São Paulo: Edições Ciência do Acidente, 1999, p. 22-23.

[2] Haijin: pessoa que escreve haicais, pessoa que dedica sua vida ao caminho do haicai.

[3] Kigo: termo que caracteriza a estação de cada haicai.

[4] Cela é o nome que se dá ao quarto do frade ou monge.

[5] Potengi é o mais famoso rio da minha terra, é o rio que deu origem ao nome do Estado do Rio Grande do Norte. Ele nasce pequenininho em Cerro Corá, a cidade de meus pais, mas torna-se grande em Natal, a capital do Estado.

[6] Popularmente conhecida como noite de Sábado de Aleluia.

[7] Enorme vela acesa nesta noite, nas igrejas católicas, dentro do rito da luz.

[8] É, então, a primeira lua cheia da primavera no hemisfério norte, equinócio vernal.

[9] Junto de todos os tabernáculos ou sacrários, nos templos católicos, arde obrigatória e continuamente um fogo, vela ou lâmpada. Este fogo é apagado na quinta-feira da Semana Santa, quando o altar é desnudado e a Igreja mergulha na Paixão de Cristo, ficando sem flores e com as imagens dos santos cobertas. Na noite do Sábado Santo, que é o Sábado de Aleluia, celebra-se a maior e mais solene de todas as missas do ano. É no início dessa celebração – que começa fora do templo totalmente escuro e à luz da lua cheia, a lua de Páscoa – que tem lugar o rito de “bênção do fogo novo”, o fogo sagrado referido no poema. Com esse fogo, o sacerdote acenderá o círio pascal, num ritual bem preciso e cheio de significados, e o fogo do círio é passado às velas dos fiéis que em procissão entram no templo, iluminando-o. Neste dia de grande festa, em que se proclama a Páscoa solenemente, o fogo santo (isso era mais comum antigamente, mas se faz ainda hoje nos lugares onde há vela junto ao sacrário, em vez de lâmpada elétrica) volta a queimar diante do tabernáculo, e permanecerá cuidadosamente resguardado, sem jamais se apagar, até à Semana Santa do próximo ano. Como sacerdote, conheço bem o rito anual de bênção do fogo, desta celebração da luz.

[10] Durante toda a Quaresma, que é o tempo litúrgico que precede a Páscoa, os sinos das igrejas em muitos lugares sequer tocam. Tudo se torna sóbrio na liturgia cristã, não se diz nem se canta “aleluia”, não se enfeita o templo etc. Na noite de Páscoa, os sinos voltam a tocar com cantos de “aleluia” e acaba-se o tempo das penitências.

[11] Hóstia é o pão consagrado, que é o próprio Cristo adorado e recebido pelos fiéis. Neste caso, a lua cheia lembra a hóstia elevada pelas mãos do padre, na missa.

[12] A partir do entardecer dos sábados, é Domingo no calendário litúrgico cristão, diferentemente do civil.

[13] Embora muito do que eu disse até agora seja de matiz religioso, a noite de Páscoa é marcada por diversos eventos populares não religiosos.

[14] Ouvi de meus avós muitas histórias destas noites enluaradas, algumas de seres encantados, outras mais humanas. Por exemplo, as moças que se casavam contrariando a vontade dos pais, numa época em que os casamentos eram arranjados pelos chefes das famílias, fugiam com seus amados em “noites de lua”. Contudo, dentro do rigoroso sistema moral daqueles tempos, até isso era feito com a mediação de uma pessoa de honra que, posteriormente, tentaria reconciliar as partes conflitantes. 

[15] A utilização de hífen em lua-desta-noite é meramente instrumental, para enfatizar no texto em prosa a ideia do kigo que se exprime no conjunto das palavras.  

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