À SOMBRA DOS IPÊS

 

(Imagem Musskoff - Pixabay)



À SOMBRA DOS IPÊS

 

 

 

Chão pleno de flor

Na sombra do ipê-roxo —

Saudade do pai

 

 

 

Esse haicai foi escrito para o amigo W. O. K., por ocasião do falecimento de seu pai, P. K. Em seu tributo foram plantados quatro ipês: um ipê-amarelo, um ipê-branco, um ipê-roxo e um ipê-rosa.

 

 

IPÊ-ROXO, O KIGO

 

A estação do haicai acima é inverno, pois IPÊ-ROXO é kigo de inverno, período de sua floração. Dito de modo simples, kigo é aquela palavra de estação que dá ao haicai seu sentido de ser. Ipê-amarelo e ipê-branco resultam em kigos de primavera. Já um ipê-rosa, tal como o roxo, é de inverno. IPÊ sem qualquer outra referência será sempre entendido como de primavera. A flor do ipê é oficialmente a flor nacional e símbolo da primavera brasileira. É a flor suprema para muitos haijins do Brasil, algo talvez equivalente à cerejeira (sakura) no Japão. Haijins são poetas de haicai, iniciados nessa arte, mestres ou discípulos do caminho do haicai, pessoas que escrevem tais poemas. O mestre H. Masuda GOGA tomou o ipê como exemplo, para explicar kigo no Brasil, em um dos instantes mais sublimes e decisivos da história do haicai em nosso país.

 

 

INVERNO, A ESTAÇÃO

 

Na kigologia, de modo geral, o inverno exprime uma poética de senilidade, bem como a sensação de solidão. É claro que, se falamos de uma árvore de inverno, por se tratar de um ipê-roxo florido ou da queda de suas flores, como é o caso no poema, essa árvore já perdeu as folhas. Assim, outros sentimentos são sugeridos, posto que estamos diante de uma caducifólia e em pleno inverno: algo sombrio e tristonho, taciturno; algo de carência, pela nudez da árvore, não obstante estar florida; grande introspecção e uma não leveza, por tudo o que já se disse e porque são roxas as flores, cor da saudade, cor que em nossa cultura simboliza também a morte e o luto. Nada disso, contudo, é aqui entendido de forma negativa, mas absolutamente natural e sob um prisma de contínua transformação. É a celebração da natureza em seus ciclos e da existência humana...

 

 

O CHÃO E A FLOR

 

O sentimento de prostração pela perda e pelo luto – no contexto particular deste haicai – é sugerido em “chão”, o que se suaviza quando o vemos repleto de “flor”. Há muita delicadeza na cena que eu vi. Porém a flor não está em seu primeiro lugar natural. A árvore vive mais uma fase de declínio, pela desfloração (perda das flores). Parte das flores já não se encontra onde exprimira o auge de sua beleza. Elas são, agora, beleza derramada e prenúncio do fim de mais um ciclo. Mas há, certamente, esperança no coração daquele que contempla a natureza e sabe ler os seus sinais: depois da queda das flores virão as folhas novas...

 

 

A SOMBRA

 

A “sombra” é, inúmeras vezes, sinônimo de proteção, amparo e até refrigério (não tanto no inverno, por certo!), mas também de obscuridade, do que é indesejável e negativamente sombrio. A sombra, numa leitura teológica, é símbolo da proteção de Deus. É também símbolo do pai, neste poema. Todas essas leituras são possíveis e, seguramente, outras. Se o sentimento que temos em “sombra” nos parecer menos positivo – por exemplo, a sombra como luto –, então, as flores cumprem o papel de apaziguar isso, dando-nos um luto suavizado! Se, por outro lado, quisermos ler que a sombra é representação – positiva – da figura paterna, entenderemos que por meio da natureza o filho oferece as flores do seu luto ao pai. Este chão da sombra do ipê está repleto de flores que caem, inclusive, como lágrimas. Mas se o chão representa prostração, como vimos, representará também – especialmente associado ao pai – firmeza.

 

 

FORÇA E FUGACIDADE

 

O ipê, seja qual for a sua cor, é sempre uma árvore de exuberância e indiscutível beleza, uma árvore que se impõe, mas que também aponta para o que é efêmero, ainda mais quando pensamos em sua fulgurante e breve floração. Assim, esses paralelos se cruzam e contrastam no haicai, força e fragilidade se harmonizam. O efeito transitório de sua floração é um convite a viver intensamente porque, tal como a sua florada, a vida é fugaz.

 

 

A SAUDADE

 

A desfloração do ipê, bem como a sua floração, é verdadeiro espetáculo da natureza. A queda das flores representa bem a desolação do filho. Porém, o sentimento que triunfa é “saudade”. Para os que moram na pátria da língua portuguesa, não há necessidade de se explicar o que é saudade, palavra de impossível tradução e sem equivalência em outros idiomas. A contemplação do ciclo do ipê, como é descrita no poema, suscita a saudade. Traz, dessa forma, a lembrança do pai. É uma ausência que se faz presença. A natureza, portanto, dá suporte ao filho para que se apazigue o carecimento do pai. A tristeza não subsiste no poema.

Para dizer que não tem fim a saudade do pai que se foi, o haicai não recebeu o ponto final. É bem verdade que muitas vezes eu simplesmente ignoro qualquer pontuação em meus haicais. Mas a não pontuação, nesse caso, pode expressar, além da saudade ilimitada do filho, o grande vazio decorrente da ausência física do pai. Como ficou dito, o quadro é sereno e de fusão do homem com a natureza.

Nota íntima.

 

 

*

 

  

Voltei-me hoje para o ipê-rosa. Que suaves podem tornar-se, na mesma estação, cores e sentimentos! Que mestra é a natureza! Muito em breve, quando o ipê-amarelo e o ipê-branco florirem, meu velho amigo escreverá seus haicais de primavera.

Neste instante cai uma chuvinha de inverno, miúda e quase silenciosa, acompanhada de ligeira escuridão e prenúncio de mais frio. Por tudo somos gratos a Deus! A vida segue e vamos através...

 

 

As flores molhadas

Sob este ipê-rosa —

Um raio de sol

 


Seishin 清心

Diário, inverno de 2015

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