À SOMBRA DOS IPÊS
À SOMBRA DOS IPÊS
Chão pleno de flor
Na sombra do ipê-roxo —
Saudade do pai
Esse haicai foi escrito para o amigo W. O. K., por ocasião do falecimento de seu pai, P. K. Em seu tributo foram plantados quatro ipês: um ipê-amarelo, um ipê-branco, um ipê-roxo e um ipê-rosa.
IPÊ-ROXO, O KIGO
A estação do haicai acima é
inverno, pois IPÊ-ROXO é kigo de inverno, período de sua floração. Dito de modo
simples, kigo é aquela palavra de estação que dá ao haicai seu sentido de ser. Ipê-amarelo
e ipê-branco resultam em kigos de primavera. Já um ipê-rosa, tal como o roxo, é
de inverno. IPÊ sem qualquer outra referência será sempre entendido como de
primavera. A flor do ipê é oficialmente a flor nacional e símbolo da primavera
brasileira. É a flor suprema para muitos haijins do Brasil, algo talvez
equivalente à cerejeira (sakura) no Japão. Haijins são poetas de haicai,
iniciados nessa arte, mestres ou discípulos do caminho do haicai, pessoas que escrevem
tais poemas. O mestre H. Masuda GOGA tomou o ipê como exemplo, para explicar
kigo no Brasil, em um dos instantes mais sublimes e decisivos da história do
haicai em nosso país.
INVERNO, A ESTAÇÃO
Na kigologia, de modo
geral, o inverno exprime uma poética de senilidade, bem como a sensação de
solidão. É claro que, se falamos de uma árvore de inverno, por se tratar de um
ipê-roxo florido ou da queda de suas flores, como é o caso no poema, essa
árvore já perdeu as folhas. Assim, outros sentimentos são sugeridos, posto que
estamos diante de uma caducifólia e em pleno inverno: algo sombrio e tristonho,
taciturno; algo de carência, pela nudez da árvore, não obstante estar florida; grande
introspecção e uma não leveza, por tudo o que já se disse e porque são roxas as
flores, cor da saudade, cor que em nossa cultura simboliza também a morte e o
luto. Nada disso, contudo, é aqui entendido de forma negativa, mas absolutamente
natural e sob um prisma de contínua transformação. É a celebração da natureza em
seus ciclos e da existência humana...
O CHÃO E A FLOR
O sentimento de prostração
pela perda e pelo luto – no contexto particular deste haicai – é sugerido em
“chão”, o que se suaviza quando o vemos repleto de “flor”. Há muita delicadeza
na cena que eu vi. Porém a flor não está em seu primeiro lugar natural. A
árvore vive mais uma fase de declínio, pela desfloração (perda das flores). Parte
das flores já não se encontra onde exprimira o auge de sua beleza. Elas são,
agora, beleza derramada e prenúncio do fim de mais um ciclo. Mas há, certamente,
esperança no coração daquele que contempla a natureza e sabe ler os seus
sinais: depois da queda das flores virão as folhas novas...
A SOMBRA
A “sombra” é, inúmeras
vezes, sinônimo de proteção, amparo e até refrigério (não tanto no inverno, por
certo!), mas também de obscuridade, do que é indesejável e negativamente sombrio.
A sombra, numa leitura teológica, é símbolo da proteção de Deus. É também
símbolo do pai, neste poema. Todas essas leituras são possíveis e, seguramente,
outras. Se o sentimento que temos em “sombra” nos parecer menos positivo – por
exemplo, a sombra como luto –, então, as flores cumprem o papel de apaziguar isso,
dando-nos um luto suavizado! Se, por outro lado, quisermos ler que a sombra é
representação – positiva – da figura paterna, entenderemos que por meio da
natureza o filho oferece as flores do seu luto ao pai. Este chão da sombra do
ipê está repleto de flores que caem, inclusive, como lágrimas. Mas se o chão
representa prostração, como vimos, representará também – especialmente associado
ao pai – firmeza.
FORÇA E FUGACIDADE
O ipê, seja qual for a sua
cor, é sempre uma árvore de exuberância e indiscutível beleza, uma árvore que
se impõe, mas que também aponta para o que é efêmero, ainda mais quando
pensamos em sua fulgurante e breve floração. Assim, esses paralelos se cruzam e
contrastam no haicai, força e fragilidade se harmonizam. O efeito transitório
de sua floração é um convite a viver intensamente porque, tal como a sua
florada, a vida é fugaz.
A SAUDADE
A desfloração do ipê, bem
como a sua floração, é verdadeiro espetáculo da natureza. A queda das flores
representa bem a desolação do filho. Porém, o sentimento que triunfa é
“saudade”. Para os que moram na pátria da língua portuguesa, não há necessidade
de se explicar o que é saudade, palavra de impossível tradução e sem
equivalência em outros idiomas. A contemplação do ciclo do ipê, como é descrita
no poema, suscita a saudade. Traz, dessa forma, a lembrança do
pai. É uma ausência que se faz presença. A natureza, portanto, dá suporte ao filho
para que se apazigue o carecimento do pai. A tristeza não subsiste no
poema.
Para dizer que não tem fim a saudade do pai que se foi, o haicai não recebeu o ponto final. É bem verdade que muitas vezes eu simplesmente ignoro qualquer pontuação em meus haicais. Mas a não pontuação, nesse caso, pode expressar, além da saudade ilimitada do filho, o grande vazio decorrente da ausência física do pai. Como ficou dito, o quadro é sereno e de fusão do homem com a natureza.
Nota íntima.
*
Voltei-me hoje para o ipê-rosa. Que suaves podem tornar-se, na
mesma estação, cores e sentimentos! Que mestra é a natureza! Muito em breve, quando
o ipê-amarelo e o ipê-branco florirem, meu velho amigo escreverá seus haicais de
primavera.
Neste instante cai uma
chuvinha de inverno, miúda e quase silenciosa, acompanhada de ligeira escuridão
e prenúncio de mais frio. Por tudo somos gratos a Deus! A vida segue e vamos
através...
As flores molhadas
Sob este ipê-rosa —
Um raio de sol
Seishin 清心
Diário, inverno de 2015