RESENHA - O Som da Cascata
O SOM DA CASCATA
por Carlos Martins
Meu
Deus do Céu, se este livro trouxesse apenas o seu prefácio, já seria uma das
maiores contribuições que um haijin
poderia ter, em seu palmilhar o Caminho do Haicai!
Não
consigo parar de relê-lo, pois tem tudo que acredito e na voz, nas palavras, de
um dos nossos maiores mestres de haicai: Seishin. Sua humildade, entretanto,
fará com que ele torça o nariz em desaprovação a essas minhas palavras, mas,
que posso fazer se acredito nelas, por vivenciar mediante seus escritos e – por
grata felicidade – nossas conversas ocasionais?
“O que faz um haicai ser haicai e não outra
coisa?
Resposta possível, mas que apenas
tangencia a questão: o sabor.
(...)
Se a sua mente estiver vazia, talvez
você encontre o haicai. Talvez nunca escreva um, mas saberá seu sabor quando o
encontrar. Algo vai tocar seu coração.”
Com
essa pérola, ele inicia o prefácio, nos convidando a refletir sobre nosso
próprio escrever, ao mesmo tempo que nos deixa ansiosos pelas páginas
seguintes, em ler com o coração seus poemas inspirados. Mas ele não para por aí
e novas chacoalhadas surgem:
“Não queira escrever um bom haicai. Apenas
escreva. E não tema o julgamento de ninguém. Faça tudo com humildade, sem
pretensão.”
São
ou não são palavras de um autêntico mestre? Não precisamos invejar os
contemporâneos de Bashô ou Issa, pois temos um aqui que, de quebra, é nosso
próprio “monge”.
Seishin
– haigô, nome haicaístico de Antonio
Fabiano – é um frade carmelita descalço que, atualmente, vive em um convento
nos rincões de Minas Gerais. Poeta e haicaísta de longa data, praticante da
modalidade tradicional diretamente oriunda do poema japonês, com vários livros
publicados, além de participação em antologias, é também um estudioso do poema
mínimo, com diversos textos sobre ele, em seus blogs na internet ou páginas de revistas literárias. Mas, o haicai
não é a única arte japonesa que ele pratica, há também o sadô ou chadô, o Caminho
do Chá. Ele é um praticante de elevado grau da Cerimônia do Chá.
O
resultado de toda essa vivência, é um fazer haicai dos mais especiais entre os
praticantes do haicai no Brasil.
Antes
de entrarmos propriamente nos poemas há uma pista, ainda no prefácio, do estado
espiritual que os deram à luz e que é uma verdadeira chave para compreendê-los:
“Um haijin não pode ser orgulhoso. Se houver
um fio de orgulho em seu coração, não conseguirá compor um haicai digno de
consideração.”
É
preciso ter um coração verdadeiramente puro e cristalino para eternizar tais
palavras em uma página escrita. Dizê-las ao vento, tudo bem, elas irão embora e
não seremos cobrados por elas. Mas, firmá-las em um texto no qual poderemos ser
acareados se incorrermos em deslizes, não é para qualquer um. Os haicais que
ele nos brinda, em seguida, dispostos em estações do ano, só vêm a comprovar a
veracidade dessas palavras, pois têm um fio condutor de humildade, doçura e
profunda espiritualidade.
Sim,
é isso que encontramos em O Som da
Cascata (2023), trabalho primoroso de André Kondo na sua Telucazu Edições,
no formato atraente aproximado de um livro de bolso, nos convidando a tomá-lo
como um vade-mécum, um “vem comigo”,
para o lermos a toda hora, em qualquer lugar. Conseguindo passar pelo prefácio
sem o ler e o reler várias vezes, chegamos à fonte de água pura: seus haicais.
O
projeto de Seishin tem uma novidade muito interessante. Precedendo os haicais
de cada estação, ele apresenta um texto em prosa, entremeado de haicais,
relativo a cada uma delas. À moda dos diários de viagem de Bashô, ele
contextualiza a estação. Tais textos são como que um livro dentro do livro, de
tão saborosos e singulares. Logo após, vem a torrente caudalosa de poemas,
geralmente três por página.
Quem
não leu nada dele, deve estar ansioso para ter alguns exemplos. Vamos lá!
no espelho
d’água
tremula a velha
montanha —
vento de
primavera
Já
no primeiro exemplo, encontram-se duas características marcantes de seu estilo: o uso
constante do kireji (termo de corte,
na forma de um travessão) para deixar clara a pausa pretendida, e a leveza
gramatical, somente com o uso de letras minúsculas e economia na pontuação, se
valendo dela apenas em absoluta necessidade.
Avenida
Angélica —
em cama de
flor de ipê
o mendigo
bêbado
Há,
aqui, um contraste excepcional entre a beleza do ipê e a realidade do excluído.
Nomear a localidade, carrega um duplo sentido. Primeiro, que nos diz que tal
cena pode ser vista em um logradouro próximo de nós, não tão universal assim;
segundo, para quem conhece essa avenida, há um reforço nessa desigualdade, pois
ela cruza Higienópolis, em São Paulo, bairro de classe média alta, residência
de artistas, empresários e até ex-presidente da República.
noite de
calor —
pés
descalços no azulejo
pensando na
vida
A
riqueza desse poema, seus múltiplos significados e possibilidades (além da
literalidade) só se percebe deixando o espírito solto... Para um obreiro
espiritual como o autor, constata-se que a reflexão sobre a vida e as coisas
pode ocorrer a todo momento, não necessitando de formalidades ou locais
especiais para acontecer. Está na primeira pessoa, o que muitos desaprovariam?
Sim e não, e Seishin foi um bom artífice dessa dubiedade. Pode ser ele mesmo
caminhando no convento, ou um outro frade, ou, enfim, sermos eu ou você. Todos
podemos – e devemos! – pensar na vida, em como melhorar a oportunidade dada
pelo Insondável de desfrutá-la.
águas de
outono —
querubins e
virgens choram
nos vitrais
do templo
Este,
verdadeiramente, é de chorar... Chorar de emoção e alegria pela imagem que ele
nos presenteia, que chega a nos confortar a alma. Falar de espiritualidade, sem
pesada tintura religiosa. De solidão em uma tarde de outono, em uma igrejinha,
sem dor ou tristeza. Que poder de sensibilização íntima tem o haicai!
noite gélida
—
os postes da
vila
iluminam o
silêncio
Eu
persegui esse haicai a vida toda. Já o tentei em todas as estações, de todos os
anos. Antes mesmo do haicai, em poesia. E não consegui. É isso! Somente isso!
Em três linhas todo um cenário de solitude, silêncio e a esperança da Luz sobre
o mundo dos homens que vem...do alto!
Este
é Seishin, que todos que o conhecem, admiram e seguem, em sua poesia, em seu
haicai. O mais bem-acabado exemplo de irmão em poesia!
E,
em um uróboro haicaístico, no fim retornamos ao princípio, no caso, a mais um
trecho do esplêndido prefácio:
“Esforce-se para
honrar os ensinamentos do caminho. E aprenda de todos, porque não há no mundo
quem não lhe possa ensinar alguma coisa. Para instruir-se no haicai, você se
fez aluno de insetos e plantas, ventos e nuvens, chuvas e luas. Esforce-se
mais, dê o melhor de si. Busque, sem desanimar, a simplicidade do haicai e a
disposição de espírito que para ele deve ter.”
Que
o Insondável nos possibilite isso...
Carlos Martins
O Zen do
Haicai
Março de 2023